AS BONDOSAS. Abril de 2015. Foto / Janderson Pires. |
"Apressem-se e levantem sobre nós o seu lamento, para
que nossos olhos se desfaçam em lágrimas e as nossas pálpebras destilem
água".
Da ancestralidade bíblica ao contexto da cultura popular
nordestina, por lá passam as profissionais do luto, as carpideiras, pagas para
chorar pela morte alheia.
Figuras milenares atravessaram gerações e povos diversos.
Hoje sobrevivem quase como personagens pitorescos capazes de conduzir a
inspirados enfoques musicais (“Procissão das Carpideiras”, de Lindembergue
Cardoso) ou poéticos, como a literatura dos cantadores e cordelistas.
Ou ainda no teatro, com exemplos da envolvência criativa de
Newton Moreno na peça As Centenárias
ou, em data mais recente, As Bondosas,
de Ueliton Rocon, esta última com a Cia
SOS de Teatro Investigativo, sob o competente comando de Tom Pires.
Três carpideiras, assumidas aqui por protagonistas
masculinos, a saber Prudencia
(Sidcley Batista), Angústia (Gerson
Lobo) e Astúcia (Leandro Mariz),
pranteiam o velório da jovem filha de uma família, aparentemente, de boas
posses. Contratadas, aqui, para se
fingirem de tristes, expõem ligações afetivas tais como se fossem lídimas
portadoras da intimidade e dos laços familiares da morta.
Onde, com seus terços, rezam credos e cantam benditos em
forma de incelenças, travestidas em solenes figurinos (Leandro Mariz), mais
próximos da atemporalidade, ao realçar uma profissão com sotaque de
antiguidade.
Tudo numa cenografia minimalista (Sidcley Batista) que
acentua o jogo dramatúrgico através de precisas caixas de madeira, como um catafalco
em permanente mobilidade.
E, ainda, por intermédio das acertadas interferências
musicais (Tom Pires) e de efeitos luminares entre sombras (Eduardo Salino), que enfatizam o
irônico gestual de solene ritualismo em torno da defunta.
A superlativa performance do elenco induz à própria
qualificação cênica destes quase personagens da vida real que são, por si só,
carregados de teatralidade pela sua função de mascarar a hipocrisia social das
lamúrias pagas.
E num dinâmico crescendo, demonstrativo da sensível urdidura
da direção, a peça promove uma devassa tragicômica das falácias humanas, entre
a mediocridade do mal falatório, a pequenez do ciúme e a amarga nudez da
sexualidade reprimida.
Levando, enfim, a plateia a um reflexivo estado de comicidade.
Mas de postura brechtiana, diante do
riso nascido das lágrimas compradas:
"Finge que está
profundamente triste, põe vestido de luto, não te unjas de óleo e sê como uma
mulher que está de luto por algum morto".
ESPELHO, ESPELHO MEU
“As muito feias que me
perdoem/mas beleza é fundamental”,
a Receita de Mulher do poeta Vinicius pode servir de mote às desventuras
profissionais, amorosas e existenciais de Maricleide.
Personagem única da adaptação teatral A Vida Sexual da Mulher Feia,
a partir do livro de Claudia Tajes, nada funciona no disfarce de seus
despropositais defeitos estéticos e quanto mais olha seu reflexo especular mais mimetiza
sua feiura.
Confessional, da adolescência aos anos adultos, sua trajetória,
de decepções e amargura, na inútil tentativa de fugir à sua fealdade de patinho
do conto de Andersen, cruza com tipos
incrivelmente mais caricaturais que a própria - de confusos gays a repulsivos
pretendentes de machismo próximo à marginalidade.
E é assim que a concepção de Otávio Müller, ator/dublê de
diretor, funciona a mil maravilhas quando resolve assumir, em compasso de sarcástico
humor, que ele é esta própria “baranga”,
numa coerente versão dramatúrgica de Julia Spadaccini, com supervisão de Amir
Haddad.
E ao expor, com sotaque de comédia rasgada, seus nada
atrativos dotes físicos em tom de absoluto deboche, com as eficientes projeções
visuais (Batman Zavareze/Nathalie Melot) e a proposital breguice dos figurinos,
em tons superlativos, de Adriana Schmidt.
No seu enfoque minimalista de recursos cênicos, acentua os
descuidos propositais da aparência, sem pudores ou maquiagem, construindo um retrato
deveras envolvente do personagem.
E acertando, enfim, no seu alcance cúmplice da simpatia do
público, num surto de riso, misto de apiedada melancolia.
Para uma representação farsesca de um monólogo que mantem seu ritmo, sem necessidade
de apelo ao humorismo fácil e meramente descartável .
E de inteligente ironia, quando aposta em Maricleide como modelo escultural vivo
de Botero, vale referenciar, na
medida da medida, o conceito filosófico de Umberto Eco :
“É divertido buscar a
feiura, porque a feiura é mais interessante que a beleza. A beleza
frequentemente é entediante - todo o mundo sabe o que é a beleza”...
Wagner Corrêa de Araújo
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