JOGOS DE VAIDADE E DE PODER
Dois incisivos textos da nova dramaturgia brasileira levam a
uma reflexão sobre a invasão indiscriminada dos espaços privativos do "outro" numa sociedade
onde o que menos importa são os valores morais do respeito e da ética .
A peça de 2007 - Limpe
Todo o Sangue Antes que Manche o Carpete, envolvente texto de humor negro
de Jô Bilac, volta ao cartaz numa concepção da Cia dos Inquietos, composta por integrantes de alguns dos mais
inventivos grupos teatrais da pauliceia. Com a direção de Eric Lenate, o texto
do autor carioca ganha, aqui, uma atraente roupagem expressionista que acentua
os valores originais de sua linha dramatúrgica.
Nela, quatro personagens disputam, não importando as
consequências físicas ou morais que suas armas causem, desde uma vaga numa
empresa como a próxima e possível herança de uma velha senhora, agindo como
aranhas à espera de moscas que caiam em suas teias.
Desafiados por forte presencial cênica, os quatro atores
imprimem ao texto, com bem dosados toques críticos de um filme de suspense, o
necessário ritmo que faz a plateia rir ou ter medo das misérias inerentes à
condição humana.
Aplaudida pelo público e incensada pela crítica, a dupla
Moraes e Mendonça (o diretor Paulo de Moraes e o autor Maurício Arruda Mendonça)
tem enriquecido a cena brasileira com suas concepções para o Armazém Companhia de Teatro.
Agora,
eles estão de volta com O Dia em que Sam
Morreu, numa temática de corte laminar afiado, sobre as cruéis relações da vaidade e do exercício cruel
do poder sobre o próximo, no mórbido ambiente de um hospital.
Como os simbólicos manequins de madeira estendidos em macas,
aqui os seres deste micro universo são como títeres uns nas mãos dos outros, em
sucessiva cadeia de corrupção e de perversidade.
A já conhecida impactante cenografia com score musical ao
vivo de outras montagens do Armazém,
faz-se presente com referências mondrianescas
nas cores do cenário ao fundo em contraste com a frieza asséptica do branco
de um hospital.
Com segura direção, os atores alcançam bem os tons
pretendidos nesta batalha da condução de um texto qualitativo que apresenta
apenas uma certa deficiência na captação de mais fácil acessibilidade para o entendimento da plateia, ao insistir no quase hermético recurso da "sucessão
de reinícios", em proposital e incomodo ir e vir para mostrar os meandros
do poder sem moral convertido em tirania.
O DIA EM QUE SAM MORREU. Armazém Companhia de Teatro. Foto/João Gabriel Monteiro. |
UMA ALMA DE LUTO
O teatro é mágico se é capaz de fazer o espectador entrar em
sintonia com os atores quando, pela representação verbal e gestual, estes
conseguem chegar perto do mistério das coisas imateriais e do sentimento do
inexprimível que é a própria razão da poesia. Esta reflexão cabe ao sensível
espetáculo Desalinho, livremente
inspirado na trágica trajetória existencial da poeta portuguesa Florbela
Espanca:
"Sou a
crucificada...a dolorida...alma de luto sempre incompreendida".
O texto de Márcia Zanelatto, nome conhecido da nova
dramaturgia carioca, soube captar a essência filosófica do destino triste de
uma mulher, oprimida no conservadorismo de seu tempo, que foi brutalmente
impelida para a morte, numa sequência de internações psiquiátricas e após a terceira e definitiva tentativa de suicídio, aos 36 anos, em 1930.
Assumindo a personalidade da poeta, Mariana (Carolina Ferman) em seus delírios acredita ter assassinado
o irmão (Gabriel Vaz), por quem nutria um proibido desejo desde a infância, e
revelado nos diálogos com a acolhedora enfermeira do manicômio (Kelzy Ecard).
A narrativa dramatúrgica mantem o sotaque lírico na
inteligente transposição que a autora faz da mistura do real (o irmão de Florbela Espanca, em verdade, morreu num
acidente de avião) e do imaginário - a presença do companheiro fraternal se
confunde com a do poeta Fernando Pessoa que assim definiu Florbela :
"Uma alma
sonhadora, irmã gêmea da minha".
Esta história de ilusão e desenganos carregada de amor, tragédia,
loucura e morte, alcança o tom dramático e estético sugerido, através do competente
comando de Isaac Bernat, onde perde-se, apenas, parte do clima intimista
necessário, numa grande dimensão espacial (caso do formato do Teatro de Arena, Sesc/Copacabana).
Em espetáculo capaz, ainda, de ser potencializado na reflexiva luminosidade da
coesa performance dos jovens atores que fazem os irmãos apaixonados .
E, especialmente, no desempenho do terceiro personagem (como
se fora um alterego e testemunho do
destino trágico daqueles poetas que só começam a viver depois de mortos),
alcançado, aqui, na maturidade interpretativa de uma das mais expressivas
atrizes da mais recente cena brasileira contemporânea.
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