NOVO FLUXO : A INTERATIVIDADE COREOGRÁFICA URBANA/CONTEMPORÂNEA EM MAIS UMA SINGULARIZADA CRIAÇÃO DA CIA HÍBRIDA



Novo Fluxo/ Cia Híbrida. Renato Cruz/Direção Concepcional/Coreográfica. Maio/2025. Renato  Mangolin/Fotos.


Na proximidade de suas quase duas décadas, a Cia Híbrida vem se destacando pelo sotaque diferencial que sempre imprime, através de seu idealizador, diretor e coreógrafo Renato Cruz, à dança urbana. E é este signo estético que retorna, com a habitual pulsão, na sua última criação titulada Novo Fluxo.

Onde ele transcende a linguagem generalizada dos diversos segmentos das danças urbanas através do dimensionamento dos caracteres estilísticos básicos do gênero, sob um tratamento que remete aos avanços da contemporaneidade coreográfica.

E por isso mesmo é que, já há algum tempo, Renato Cruz vem se especializando, nesta busca de novas e surpreendentes linguagens artísticas, em residências que vão além-fronteiras, especialmente no circuito de reconhecidos centros coreográficos da capital francesa.

Dividindo-se entre participações que vão do Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro, a atuações em Paris, passando por diversos estágios e temporadas  no Le Centquatre, no Parc de la Villete, ou no Carreau du Temple.


Novo Fluxo/ Cia Híbrida. Renato Cruz/Direção Concepcional/Coreográfica. Maio/2025. Renato  Mangolin/Fotos.


Tendo estreado, simultaneamente em 2023, no Teatro do Oprimido de Paris e no Centro Coreografico carioca, em parceria criativa com a Cie Gelmini, do diretor/coreógrafo Gustavo Gelmini, baseada inicialmente no RJ e desde 2019 em Paris, no espetáculo Pulso. E, agora, a Cia Híbrida outra vez, faz uma estreia paralela RJ/Paris com o seu mais recente espetáculo - Novo Fluxo.

“A repetição é um modo poderoso de intensificar a emoção interna e, ao mesmo tempo, criar um ritmo primitivo que é, por sua vez, um modo de chegar a uma harmonia primitiva em toda forma de arte”. Significativas palavras do artista russo-alemão Wassily Kandinsky podem ser um referencial para o processo do desenvolvimento coreográfico de Novo Fluxo.

Conectando, metaforicamente, os traços geométricos circulares de sua pintura abstracionista, sugestionando ininterrupta energia e movimento, à idealização concepcional, dirigida e coreografada por Renato Cruz, sem impedir uma espontânea e livre atuação de seus intérpretes / criadores.           

Ao se iniciar este espetáculo seus sete convictos performers-dançantes (Fábio Max, Jefte Francisco, Josh Antonio, Maju Freitas, Rayan Sarmento, Tamara Catharino e Yuri Tiger), na imobilidade de sua fixa corporeidade vão, aos poucos, entre pausas respiratórias e expressões faciais, liberando uma sequencial fragmentação gestual.

Que repercurte um estado de psicofisicalidade, na manifestação sensorial de que cada um daqueles instantâneos movimentos de mãos, braços, pernas, ombros, está fluindo num contexto libertário para uma integrada representação social de artistas, com prevalente origem nas comunidades marginalizadas.

Enquanto antecipa, entre potenciais efeitos de sombras e luzes (Renato Machado e Diego Diener), um recorte cênico daqueles signos, ampliado em projeções quase psicodélicas e extensivo à tipicidade de sua indumentária cotidiana, através de uma corporeidade regressiva e transgressora.

Onde a contribuição dos efeitos sonoros , de andamentos eletro acústicos (Lucas Marcier e Gabriel Amori), evolui em progressão crescente com sutis andamentos rítmicos,   acentuando outro diferencial nesta proposta-performance de dança urbana,  fazendo com que esta se manifeste sob traços subliminares de dança contemporânea.

Afinal é como bem define Novo Pulso, em poético jogo  de aliteração vocabular, seu mentor estético Renato Cruz:

Novo é o fluxo que des-agua na cena que constrói o porvir. Con-fluenciar, com-partilhar, para co-existir. Comunicar com o corpo aquilo que a palavra não dá conta. E como um rio que  rende ao se juntar a outros rios (Antonio Bispo), experimentar a potência de encontrar outros caminhos ( Aylton Krenak)”...

 

                                             Wagner Corrêa de Araújo


Novo Fluxo / Cia Híbrida de Dança estreia em Paris, no próximo dia 13 de maio, voltando ao cartaz no Centro Coreográfico do RJ, nos dias 23 a 25 de maio, depois de sua pré-estreia no Espaço Sergio Porto, no ultimo final de semana de abril.

DIAS FELIZES : EM INCISIVA CONCEPÇÃO PELO ARMAZÉM COMPANHIA DE TEATRO SOB A ESTÉTICA APOCALÍPTICA DE BECKETT





Dias Felizes. Armazém Companhia de Teatro. Paulo de Moraes/Direção. Patrícia Selonk/Protagonista. Maio/2025. João Gabriel Monteiro / Fotos.


Dias Felizes (1961), é considerada, depois de Esperando Godot (1952) e de Fim de Partida (1957), como a  terceira peça do irlandês de natalidade e francês por adoção Samuel Beckett que, ao lado destas, acabou por torná-lo conhecido, decisivamente, pela instauração em sua dramaturgia de uma prevalente  estética do absurdo.

Já residindo na França, ele ali, começou a escrever suas peças em francês, caso de Esperando Godot (En Attendant Godot) mas sem deixar de lado versões inglesas, como foi no caso de Dias Felizes, apelidada ora como Happy Days ora pela nominação de Oh les Beaux Jours, inspirada por um poema de Paul Verlaine.

Marcado pelo sotaque de negativismo, amargura e de um assumido pessimismo em suas obras anteriores, Beckett a partir de um questionamento sobre se não conseguiria escapar desta tendência imprimindo alegria e esperança a uma peça sua, acabou por escrever Dias Felizes.

Que, por uma espécie de mordaz ironia, foi classificada como uma comédia trágica, em que o frenético anseio de sua personagem na busca do sentido e do alcance de um cotidiano feliz nunca chega ao fim. Na implacável perenidade do difícil suporte da condição humana sendo direcionada sempre a uma fatalista solução terminal.


Dias Felizes. Armazém Companhia de Teatro. Paulo de Moraes/Direção. Patrícia Selonk/Protagonista. Maio/2025. João Gabriel Monteiro / Fotos.


Onde na versão da Armazém Companhia de Teatro, sob a artesanal direção concepcional de Paulo de Moraes, prevalece a controvertida situação existencial de Winnie (Patrícia Selonk), uma mulher comum que então surge da cintura para cima na primeira parte e, depois, apenas com a cabeça, nas duas situações numa metafórica sugestão de estar cercada por terra de todos os lados.

Numa intrigante paisagem desértica e solar tentando, com seu ininterrupto solilóquio, encontrar algum eco em Willie seu indiferente marido. Cuja representação mais performática, lacônica e quase silenciosa, é alternada, durante a temporada de Dias Felizes, por três atores da Cia - Felipe Bustamante, Isabel Pacheco e Jopa Moraes.  

A partir de uma acurada tradução de um de seus intérpretes (Jopa Moraes) com sutis mas oportunas atualizações textuais, transmutando a original climatização narrativa no entorno de uma época muito próxima à eclosão da ameaça nuclear pelo risco, hoje cada vez mais ascendente, de uma catástrofe ambiental.

Extensiva à citação de referenciais citações literárias e musicais à contemporaneidade brasileira. Tudo isto dimensionado em precisa adequação e sem qualquer perda do enfoque original da obra beckettiana. Concorrendo para isto a sombria plasticidade visual cenográfica sob pós-apocalípticas tonalidades de desolação (Carla Berri e Paulo de Moraes).

Completada ali por uma cotidiana e, ao mesmo tempo,  atemporal indumentária (Carol Lobato) em seus reflexos especulares de uma ambientação que pode se referir tanto aos anos cinquenta como ao século XXI e até a um hecatombica paisagem futurista. Ampliada da envolvência dos psicodélicos efeitos luminares (Maneco Quinderé) e projeções virtuais às impactantes sonoridades eletroacústicas (Ricco Viana), pautadas entre acordes ora soturnos, ora energizados.

E visceralmente interpretada por uma extasiada Patrícia Selonk como Winnie, capaz de saber transitar sob compasso ritualista, em convicta expressão psicofísica, vocal e gestual, entre as frustradas sensações de uma mulher desiludida e solitária e a esperança de que aquele possa, afinal, ser ainda um dia feliz. Manipulando objetos de maquiagem retirados de uma bolsa, ao aprontar-se para uma saída sem saber o porquê ou para onde.

Surpreendendo ao encontrar um revólver ou abrindo nervosa um guarda-sol, no contraponto da quase espectral ausência de um espontâneo rastejar selvagem do marido Willie (na reestreia da peça com o ator Felipe Bustamante, numa total entrega ao seu bem ensaiado papel) limitando-se a entregar-lhe um jornal enquanto mal chega a balbuciar palavras incompletas.

A vigorosa transposição cênica imprimida por Paulo Moraes tornando mais avassaladora a “intuição do absurdo”, assim configurada pelo próprio Beckett ao definir a peça, enquanto a investigativa decifração do enigma proposto provoca, questiona, faz refletir, irradiando-se na cumplicidade da plateia ao sugestionar, do riso ao drama, um “dia feliz’ para quem realmente gosta  de Teatro com T maiúsculo ...  

                         

                                                Wagner Corrêa de Araújo



Dias Felizes está em cartaz no Espaço Armazém/Fundição Progresso/Lapa, de quinta a sábado, às 19h30m; domingo às 19h, até 18 de maio