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Num momento em que a sociedade brasileira assiste a uma
absurda sequencialidade de assassinatos brutais de mulheres, causa e consequência de
uma pulsão machista insana, reviver a saga trágica que envolveu os nomes de Euclides
de Cunha e Dilermando de Assis, com o olhar na
retomada metafórica de um julgamento pela contemporaneidade, soa mais que oportuno
diante de tudo isto.
Afinal quem seria o verdadeiro culpado por um crime de amor e
morte que abalou o ferrenho tradicionalismo da sociedade brasileira ao final da primeira década do século XX? Que tal
reavaliar o fato homicida num encontro imaginário dos dois partners de paixão e
sexo, marido, amante e uma mesma mulher Anna Emilia, confrontando-os num tribunal de nossos
dias?
Depois do sucesso da série televisiva (Desejo), de um livro
da historiadora Mary del Priore (Matar Para Não Morrer) e também de uma recente ópera brasileira de João Guilherme
Ripper (Piedade) é a vez também de Miriam Halfim surpreender, numa releitura do
mesmo tema, com outra de suas precisas e diferenciais incursões dramatúrgicas.
Que, sob uma fictícia abordagem e personalíssimo sotaque autoral, a partir
de um episódio de vivência realista, aparece, aqui, sob a simbólica titulação de Matar ou Morrer – Dilermando de Assis e
Euclides da Cunha. Com um luminoso comando direcional de Ary Coslov para um
estelar tríptico atoral - Marcelo Aquino (Dilermando), Sávio Moll (Euclides)
e Maria Adélia (Juíza). Ao lado de
outro trio de craques - Marcos Flaksman (cenografia), Aurélio de Simoni (iluminação) e Wanderley Gomes (figurino).
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Matar ou Morrer - Dilermando de Assis e Euclides da Cunha. Ary Coslov/Direção Concepcional. Agosto/2023. Fotos/Guga Melgar. |
Numa ambiência de sugestionamento emblemático, a começar pelo
palco (CCJF) num tradicional espaço arquitetônico que foi sede do Supremo (STF),
nos tempos do Rio Capital Federal, desde sua inauguração em 1909. Abrangendo, assim, o período de
acontecência da “Tragédia da Piedade” e tornando maior a subliminar comoção a
partir da peça estar acontecendo ali.
Com sua caixa cênica (Marcos Flaksman) preenchida frontalmente por um espelho
de época fissurado por tiros e uma solene tribuna jurídica, com luzes (Aurélio de Simoni) vazadas favorecendo um clima psicológico de confronto entre os dois “réus” perante
uma autoridade jurídica, sob indumentária atemporal de traços cotidianos (Wanderley Gomes).
Buscando, de um lado, redimir a culpa assassina atribuída
exclusivamente ao jovem aspirante militar Dilermando
(Marcelo Aquino) que se tornara, segundo depoimento literário do próprio, “um eterno e irremediável condenado" pelo
exacerbado conservadorismo familiar e social brasileiro extensivo à opinião
pública, tentando vencer a pecha de um pária até sua morte nos anos 50.
E de outro, procurando ouvir as razões do escritor e
acadêmico Euclides (Sávio Moll) que
justificava sua revolta e tentativa homicida, pelo desvio amoral do comportamento de
sua esposa Anna com um amante domiciliar, em palavras rompantes e
classificatórias de um amor blasfemo,
insano e indecente.
Onde a postura conciliatória de Maria Adélia, no ritualístico papel presencial da Juíza, é exposta com expressiva dignidade dramática para compreender e decifrar o desalento dos dois personagens/réus daquele julgamento de volta ao futuro.
Sendo correspondida, com coesa tensão interior e unidade
interpretativa, pela manifestação de espontânea e vigorosa maturidade dos
atores Marcelo Aquino e Sávio Moll que, junto a Maria Adélia, estabelecem um
carismático intercambio de cumplicidade emotiva palco/plateia.
Tudo se ampliando pela originalidade autoral de uma linguagem dramatúrgica de poética contundência (Miriam Halfim) que alcança uma envolvente transposição
cênica no reconhecido domínio direcional de Ary Coslov.
Em espetáculo necessário e reflexivo quando tanto se expande
a violência punitiva e de apelo vingativo em nome de uma suposta lavagem da
honra nas relações amorosas. Valendo relembrar, nesta hora, as palavras de desabafo
confessional nas letras literárias de Anna Emilia, tornada escritora como o
marido Euclides e o amante Dilermando de quase uma vida inteira, com seu
transcendente e especular eco feminista:
“Homem não peca, por
isso pode prevaricar (...) Só os maridos tem honra a vingar”...
Wagner Corrêa de Araújo
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Marcelo Aquino (Dilermando de Assis), Maria Adélia (Juiza) e Sávio Moll (Euclides da Cunha). Fotos/Guga Melgar. |
Matar ou Morrer – Dilermando de Assis e Euclides da Cunha está em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal, Cinelândia, quinta e sexta, às 19h; sábado e domingo, às 18h. Até 27 de agosto.
Tema apaixonante. Sucesso com certeza. Parabéns 👏👏👏👏👏
ResponderExcluirMiriam é sempre fascinante! Muito corajosa tocou num tema até hoje sem solução.
ResponderExcluirObrigado pelo olhar carinhoso sobre o meu trabalho e este espetáculo.
ResponderExcluirExcelente crítica e reflexão de um espetáculo fascinante!
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