ST Tragédias. Espetáculo coreográfico de Marcelo Misailidis e Ana Botafogo. Fotos/Wagner Brum. |
“Se a música é o alimento do amor, continue tocando/. Dá-me o excesso
que, farto/ O apetite pode adoecer e assim morrer”(William Shakespeare).
O substrato poético/metafórico da palavra shakespeariana vai
além da realidade fazendo com que a ação dramatúrgica se torne também gesto e
dança. O que levou também a uma intima e constante conexão estética de seu
teatro com a música transmutada em coreografia.
Onde as prevalentes versões da fatídica paixão de Romeu e Julieta são seguidas
pela simbologia trágica de Otelo, com sua visceral abordagem do ciúme, ambição,
misoginia e racismo. Sem falar nas outras adaptações frequentes de A
Megera Domada e Sonhos de Uma Noite de Verão.
ST Tragédias, é um espetáculo idealizado por Ana
Botafogo e Marcelo Misailidis, tendo como enfoque reunir duas criações
coreográficas de Misailidis, em inventiva proposta cenográfica sob
temas do teatro de Shakespeare
ligados à música de Tchaikovsky.
Com a participação dos primeiros bailarinos do Royal Ballet – Matthew Ball e Mayara Magri – em Romeu e Julieta e um destacado elenco de primeiros solistas em Othello, a saber Márcia Jacqueline, como uma interiorizada Desdemona, Edifranc Alves como um rompante Othello e Márcio Jahú, como um ferino Iago, ao lado de mais sete competentes bailarinos da cena carioca.
ST Tragédias. Othello, coreografia Marcelo Misailidis. Julho/2022. Fotos/Wagner Brum. |
O compositor russo escreveu três poemas sinfônicos a partir
do bardo inglês, a saber as Aberturas Fantasia Hamlet, A Tempestade e Romeu e
Julieta. Sendo esta última, cenicamente utilizada como um pas-de-deux entre os protagonistas titulares, sintetizando a trama
dramática em seus aspectos básicos.
Aqui, pelo uso da composição sinfônica em sua integridade, na
inicialização do espetáculo. Na alternância de dois carismáticos interpretes (Matthew
Ball e Mayara Magri) primeiros bailarinos do Royal Ballet, sabendo priorizar, com expressiva entrega emotivo-gestual, uma
irrepreensível técnica no entremeio do neoclássico com um sotaque de
contemporaneidade.
Sempre com o desafio de imprimir uma dramaturgia da corporeidade
transmutando o significado shakespeariano através de um sensorial vocabulário do
movimento e da gestualidade. O que a
concepção cênico/coreográfica de Marcelo Misailidis viabiliza, com raro apuro
artesanal, no seu empenho para traduzir este dimensionamento não verbal.
Direcionado ainda ao mais ousado enfrentamento da adaptação de
Otello para dez bailarinos, representando a totalidade dos personagens de um
intricado e extenso jogo circular de teatralidade. A ser contado nos limites
temporais do outro poema sinfônico de Tchaikovsky (no caso, Francesca da
Rimini, este sem ligação nominal/temática com Shakespeare).
Mas capaz de sustentar, concisamente nos seus potenciais acordes,
as alternâncias emocionais das sucessivas metáforas de uma narrativa de movimento, tornando perceptíveis as palavras dançadas sem estar rigorosamente preso
à literalidade textual da tragédia.
Na especular representação de personagens em compasso de um
teatro coreográfico, ampliado nos recursos de uma caixa cênica preenchida com
um funcional jogo de elementos móveis, de dúplice atributo inventor (Misailidis), com a valiosa colaboração de Ana Botafogo, remanejados
ao som de 4 lúdicos Estudos Pianísticos de Tchaikovsky,
entre a primeira e a segunda obra.
Com a manipulação tonal da iluminação (Paulo Cesar Medeiros),
ressaltando a elegância discricionária e sensitiva dos figurinos (Ney Madeira) de
Romeu e Julieta e a prevalência de
cores rubras nas indumentárias (João Paulo Bertini) com um referencial sanguíneo remetendo aos arroubos da violência em Othello.
ST Tragédias é, enfim, uma obra luminosa para tempos de crise político/cultural e referencial diante de uma crescente onda feminicida. Capaz de seduzir a plateia, além de apontar novos caminhos para a dança carioca, por sua linguagem cênico/corporal de caráter visionário, sabendo como escapar à acomodação e à carência qualitativa de algumas de nossas mais tradicionais companhias oficiais de dança...
Wagner Corrêa de Araújo
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ST Tragédias/Romeu e Julieta. Com Matthew Ball e Mayara Magri, do Royal Ballet. |
ST Tragédias está em cartaz, em curta temporada, na Cidade das Artes/Barra, sexta e sábado às 21h; domingo, às 18h. Até 17 de julho.
Tomara que voltem! Quando recebi a comunicação já não tive tempo de me organizar...
ResponderExcluirMaravilha de crítico. Parabéns
ResponderExcluirRealmente uma crítica à altura do espetáculo.
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