RETROSPECTIVA COREOGRÁFICA : À BEIRA DO ABISMO DANÇANDO PARA NÃO DANÇAR...

SÃO PAULO CIA DE DANÇA. Amálgama, de Henrique Rodovalho. Dezembro 2020. Fotos/Charles Lima/Nicholas Marchi.

Como manter acesa a chama na peculiaridade das artes cênicas sem o elemento presencial palco-plateia que arrasta em processo ritualístico, no entremeio da expressão estética e do élan emotivo, atores, bailarinos, músicos e espectadores? Ou como atuar em área de criação artística, agora potencialmente tornada de risco por suas perigosas proximidades físico/corpóreas, na instantaneidade de contágio exterminador no ar?

Mas, aos poucos, estão sendo desveladas soluções ainda que em compasso de emblemáticas alegorias diante do desmoronar de sustentáculos estéticos seculares.  Enquanto os palcos são novamente ocupados por bravos defensores do ideário e do oficio coreográfico, as plateias indecisas continuaram condenadas à ausência física e à impossibilidade do aplauso.

Mesmo com a fissura deste carismático ritual interativo palco/plateia, neste patético 2020, foram aparecendo as primeiras tentativas, ainda que, em sua maioria, quase sempre reiterativas em suas saídas via recursos áudio virtuais, na expressão simbólica do isolamento social e do distanciamento físico.

E a primeira grande surpresa nas plataformas digitais foi a disponibilização de espetáculo construído sob prescrições sanitárias, diante de enfrentamento coreográfico das limitações de um tempo de pânico, pelas cias 1 e 2 da NDT-Nederlands Dans Theater, em energizada lição gestual para despojada caixa cênica ressaltada por efeitos luminares. Ora na simbológica titularidade - Standby - remissiva a um tempo de espera, numa provocativa releitura, à luz da contemporaneidade, do vocabulário clássico por Paul Lightfoot, ora na metafórica alusão personalista a um momento de despedida em She Remembers, de Sol Léon.

Por outro lado, destacaram-se as coreografias de ambiência colaborativa com paisagens naturais, por vezes em exponenciais componentes cênicos. Como Dance of Dreams, criação coletiva do San Francisco Ballet, tendo sua culminância  no terraço de um arranha céus, sob o leitmotiv de paixão e morte, no antológico score sonoro de Bernard Hermann para o thriller Vertigo (A. Hitchcock). E no visceral experimento coreográfico Silent Burn Project da Akram Khan Company, o capítulo conclusivo Our Animal Kingdom, tributo sensorial ao meio ambiente em representação mimética ao ar livre, com pulsão de sacralidade, ao privilegiar um recorte de animação coreo/fílmica para diferentes seres da fauna terrestre. 

STANDBY. Nederlands Dans Theater. Julho 2020. Foto/ Pieter Offringa

Nossos criadores também vem incursionando, apesar dos pesares, pelos caminhos da busca investigativa para enfrentar, com garra, coragem e espírito inventivo, o desafiante panorama de perigo e caos.

A São Paulo Cia de Dança não se deixou imobilizar em momento algum, reproduzindo nas redes virtuais obras de seu repertório, num catalizador mix clássico-contemporâneo. Auspiciosas também as surpresas de sua incansável mentora mor Inês Bógea em inéditos produtos coreográficos, via lives na sua sede acadêmica, nos Teatros São Pedro e Sérgio Cardoso e em diferenciais ambiências metropolitanas.

Em especial,  no lúdico e reflexivo encontro de linguagens artísticas, sob um provocador dimensionamento concepcional coreo/cinético, em Amálgama, de Henrique Rodovalho. Fazendo interagir corporeidade, movimento, música, plasticidade, no sensorial dialogo estético entre os bailarinos e 23 obras primas do acervo, no Museu de Arte Contemporânea  da USP.

Enquanto Alex Neoral e sua Focus Cia de Dança, através de Corações Em Espera, praticamente inaugurava, em terras cariocas, as proposições pelas redes virtuais de preciso intercâmbio de simultaneidade coreográfica, com seus sete bailarinos em solos de similaridades gestuais e coincidente paisagismo cênico de âmbito domiciliar, a partir de diferentes sítios urbanos em abrangência nacional.

Fundamental foi, do Rio a Nova York, a relevância do papel de identidade feminina, nas propostas sensitivas, desenvolvidas sempre com raro apuro, em realizações conjuntas e individuais, pelo múltiplo talento das artistas Marina Salomon e Regina Miranda, nos seus tributos ao centenário de Clarice Lispector.

Valendo ainda a extensão de outras performances de vídeo-dança, com sólido sustento num teatro coreográfico de contestação e perplexidade contra quaisquer formulações obscurantistas, na peculiar psicofisicalidade de outros bailarinos/atores/coreógrafos, como Denise Stutz, Márcio Cunha e Tiago Oliveira.

No fechamento de um conturbado ano cultural, a má captação fílmica do Quebra-Nozes pelo Ballet du Grand Theatre  Geneve deixou a desejar na sua carência de visão crítica em soturna descaracterização da releitura de um clássico do período natalino. Bem ao contrário, da surpreendente transcrição com sotaque fassbinderiano do Otello, pelo Balleto di Roma, ambos na temporada internacional da Dellarte 2020, de um primeiro ano em que esta não aconteceu ao vivo e a cores.

Mas vale ressaltar também aqui o simbiótico significado do último segmento da moção virtual de integrantes do Ballet do Theatro Municipal/RJ, dentro da série Libertus apresentada por Ana Botafogo. Onde os bailarinos Rodrigo Negri e Priscilla Mota, em incisiva gestualidade, dão em Valsa no Asfalto (com coreografia do primeiro) reflexivo recado, para tempos tanto de incerteza sanitária quanto de carente dignidade política, em emotiva exploração coreográfica sob processo interativo com um carismático espaço público. Além, é claro, do contagiante referencial pandêmico-carioca do vazio de uma autóctone passarela da cultura popular brasileira...                             

                                           Wagner Corrêa de Araújo

VALSA NO ASFALTO. Rodrigo Negri e Priscilla Mota. Dezembro 2020. Foto/Léo Queiroz.

DO BOOM INVENTIVO DE VILLA-LOBOS AO DESCORTINO PROVOCADOR DO TROPICALISMO

HEITOR VILLA-LOBOS. Foto intimista. Museu Villa-Lobos/divulgação.

Entre os iniciadores da música popular brasileira vale lembrar o decisivo papel exercido na sua formatação estética, entre os séculos XIX e XX, por compositores como Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth.

Este último conseguiu estabelecer um diferencial com suas releituras de três variados gêneros de dança urbana – o tango, a valsa e o maxixe em formas brasileiras – sendo o músico mais solicitado nas reuniões familiares, nos bailes da sociedade, além de seus habituais acompanhamentos instrumentais, ao piano, nos cinemas e teatros cariocas da Belle-Époque.

Quanto a Chiquinha Gonzaga há que se considera-la a precursora legítima do samba enredo, pois foi quem primeiro escreveu música praticamente destinada ao carnaval. Sua composição “Ô Abre-Alas”, de 1889, tornou-se um clássico por sua função antecipadora como obra de particularidade pensada para os folguedos carnavalescos.

Mas o samba característico só iria surgir mesmo em 1917, numa antológica gravação fonográfica de “Pelo Telefone”, de Ernesto dos Santos popularmente conhecido como o Donga. Aparecendo, sequencialmente, grupos primitivos de sambistas tais como o Grupo do Coringa, o Grupo Carioca e a orquestra de Chico Bóia.

Começava, então, um novo capítulo de importância capital na trajetória de nossa música de raízes populares. Era o princípio da MPB como criação artística autônoma, original e de infinita riqueza melódica e rítmica. E, numa eclosão de gêneros novos, indo desde a valsa urbana e a valsa sertaneja à seresta, além da marcha rancho antecessora do samba, o baião, o samba-canção e o samba de morro. 


CHIQUINHA GONZAGA. A última foto (1932), aos 85 anos.

Abrindo-se, ainda, a era de exportação de nossos ritmos e melodias populares que, especialmente através do sucesso de Carmen Miranda, alcançou as telas mundiais via Hollywood. Cerca de 30 anos depois, em energizado surto inventivo, era a hora e a vez da Bossa-Nova, movimento capaz de conferir à MPB um status de som universal, pelo alcance de sofisticada modernização das sonoridades do samba tradicional.

Com Villa-Lobos, o Brasil decretaria a sua completa independência musical no chamado gênero erudito. Primeiro compositor brasileiro a tomar consciência da enorme potencialidade das raízes folclóricas e indigenistas, ele transcenderia as bases acadêmicas da escrita musical na riqueza exploratória do colorido e do impulso rítmico das formas musicais populares do País.

Foi um momento de total libertação da sintaxe e do conteúdo sonoro que, até então, tinham sido imprimidos estruturalmente às partituras composicionais pelo olhar secular/rebuscado dos europeus, então, os verdadeiros detentores da estética musical.

Villa-Lobos valorizaria não apenas aqueles acordes surgidos de combinações estritamente musicais, mas também sabendo privilegiar o purismo das sonoridades naturalistas. Ao compor o “Uirapurú”, em 1917, procurou reproduzir o barulho primitivo e dissonante das florestas tropicais brasileiras, inclusive recorrendo à tipicidade de instrumentos indígenas o que, à época, soou como algo ousado, inusitado e desbravador.

Teve também sua fase de exaltado nacionalismo em composições destinadas a despertar nos brasileiros o sentido de cidadania e de nacionalidade como o fez, por exemplo, em “Invocação em Defesa da Pátria” e “Descobrimento do Brasil”. Referencial ainda foi sua obra didática para a infância e juventude, incentivando a formação de grandes corais populares, e a sua singular releitura contemporânea do barroco bachiano.

Para caracterizar bem Villa-Lobos basta dizer que influenciou toda uma geração não só de compositores pátrios além de impressionar autores do relevo de Olivier Messiaen que chegou a declarar “serem os Choros de Villa-Lobos uma das mais originais criações de um artista contemporâneo”.

De Villa-Lobos à vanguarda e à nova música popular a trajetória estava aberta e seria apenas um passo, seguido pela afirmativa imposição, num plano internacional, da criação brasileira, enaltecendo a busca inventiva no oficio de compositor, seja no campo erudito como em incisivas veredas do cancioneiro popular.

Com seus mentores Caetano Veloso e Gilberto Gil, o tropicalismo acabaria, a partir da segunda metade do século, sendo um dos mais surpreendentes fenômenos da música popular brasileira com sua visão integrativa da linguagem artístico-musical.

Em conexão, simultânea e sem preconceitos, de um Brasil tropical/primitivo a um Brasil tecnocrático da cultura e da comunicação de massas. O Brasil urbano e da palhoça, o Brasil de Iracema e de Ipanema, o Brasil da piscina burguesa e da água azul de Amaralina.

Da modinha imperial, languida e lírica, à visceral interatividade dos acordes em compasso virtual foram mais de dois séculos nos quais muitos caminhos se cruzaram num mix de pulsões nativistas e futuristas.

Capazes, assim, de inserir o Brasil musical na era das viagens pelos espaços siderais e pela mente, tornando-o um dos sustentáculos de uma cultura planetária com o olhar armado na contemporaneidade.

                                         Wagner Corrêa de Araújo

 TROPICALIA-PANIS ET CIRCENSIS. Capa do disco. 1968. Foto/divulgação.

BREVE INCURSÃO NO LEGADO ANCESTRAL DA MÚSICA BRASILEIRA

LUNDU, numa gravura de Rugendas, 1835. Foto/Divulgação.

A primeira manifestação autêntica em música brasileira apareceu no final do século XVIII com a modinha que os portugueses haviam trazido das terras de além mar. Entretanto, há indícios de outras expressões musicais autônomas já no século XVII, na Bahia e em Pernambuco, ainda não devidamente estudadas.

Quanto à modinha, originária da Europa medieval da época em que os cruzados narravam através de pequenas canções os seus feitos heroicos, ela encontraria, aqui, um ambiente bastante propício à sua transformação em gênero musical de características marcantes no posterior desenvolvimento da música brasileira de raízes populares.

A modinha brasileira teria um acentuado espírito brejeiro, um forte sentimento nostálgico e uma excessiva dose de romantismo, mas plena de um lirismo ardente que, muitas vezes, trazia conotações sensuais. Os títulos traziam sempre um tom de queixa ou de ansiedade por amores impossíveis (“Se Queres Saber a Causa”, “Se Me Desses um Suspiro”) ou de triste conformação pelo amor não alcançado ou que se usufruiu por apenas alguns momentos (“Foi o Momento de Ver-te”).

E era, usualmente, acompanhada pela viola, substituída aos poucos pelo cavaquinho, embora nos salões aristocráticos quem assumisse esse papel fosse o cravo. Havendo uma nítida distinção entre a modinha popular, de caráter  sertanejo e a imperial, bastante influenciada pela música europeia.

Outro gênero musical que predominou na época foi o lundu, nascido nas senzalas com ritmos bem primitivos com forte componente afro, chegando a ser considerado imoral mas que, já o final do Primeiro Reinado, alcançaria também os salões sofisticados. E o mais curioso é que enquanto a modinha iria ter decisiva influencia na música brasileira posterior, atingindo inclusive o século XX, o lundu praticamente desapareceria com o Segundo Império.

Enquanto a modinha e o lundu eram típicas manifestações de uma música com um sentido mais popular, do outro lado, dentro do chamado gênero erudito, o Brasil já tinha começado muito bem a eclosão de um importante e intenso movimento musical barroco em terras das Minas Gerais.

Lobo de Mesquita seria o nome de maior peso entre os compositores barrocos mineiros e pode ser comparado ao Aleijadinho, pois foi tão grande na criação artística barroca como o seu contemporâneo o fora na escultura.

Com a vinda de D. João VI, em 1808, é revelado o talento de um padre mestiço neto de escravos, José Maurício Nunes Garcia, que Sigismund von Neukomm (músico austríaco acompanhante do séquito real) considerou como “o maior improvisador do mundo”. Também da Europa veio Marcos Portugal, renomado compositor português de óperas que permaneceu, no Rio de Janeiro, até a morte na mais absoluta miséria e obscuridade.

Esse foi um período de primado da música sacra, devido à preferencial tendência de D. Joao VI pelas cerimônias e cultos religiosos católicos, numa época em que Cantatas, Missas e Hinos sacros eram encomendados com fiel habitualidade.

SARAU IMPERIAL. Gravura do século XIX. Foto/Divulgação.

Havendo ainda o cultivo da denominada música de salão (de modinhas a lundus) e, com certa raridade, a música de ópera ou de teatro. Que se restringia a apresentações na corte, promovidas por D. Carlota Joaquina, uma espanhola que mandava buscar operistas em sua terra natal Aranjuez ou na cidade de Nápoles.

Mas o Brasil só viria a ser conhecido musicalmente, em nível oficial e além mar, com Carlos Gomes e o seu Il Guarany, estreando em 1870, no Scala de Milão. O estrondoso sucesso da ópera e o fato de o libreto ter se inspirado em obra literária de autor nacional e com temática indianista fez com que este data ficasse para sempre marcada em nossa história musical.

Embora conhecesse profundamente o métier de uma ópera romântica nascida dentro do estilo verdiano, Carlos Gomes não trouxe com sua linguagem musical nenhuma contribuição definitiva, pois sua criação era calcada em modelos nitidamente europeus. Mas sua passagem na trajetória musical brasileira o marcou como um dos mestres, em sua formatação estética.

Depois de Carlos Gomes, alguns nomes se destacariam por uma bem feita escrita musical embora ainda bastante influenciada pelas escolas predominantes à época – a alemã, a francesa e a italiana. É o caso de Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno, Francisco Braga, Alexandre Levy, Glauco Velasquez. Ou, em caráter especial, com Leopoldo Miguez tendo este estruturado o movimento sinfônico mesmo sob a égide pós-lisztiana.

Mas, enfim, foi através do caráter desbravador e precursor desta geração que começariam a ser abertas as portas para uma linguagem mais independente e que explodiria, nas primeiras décadas do século XX, no caminho autóctone do nacionalismo conectado com a criação musical contemporânea.

                                               Wagner Corrêa de Araújo

IL GUARANY. Cena da primeira produção da ópera, em 1870, Scala di Milano. Foto/Divulgação.

A OBRA ABERTA : UMA SÍNTESE CONCEITUAL PARA SUA LEITURA

UMBERTO ECO E A OBRA ABERTA, em reflexo escultórico-especular. Foto/divulgação.

Partindo do conceito de “obra aberta”, segundo o ideário propugnado por Umberto Eco, como “aquela que é levada a seu termo pelo intérprete no momento em que a goza esteticamente”, constata-se a prevalente existência de um campo infinito de possibilidades criadoras, tanto quanto de opções oferecidas ao consumidor.

Uma obra de arte, forma acabada e fechada na sua perfeição de organismo perfeitamente calibrado, é igualmente aberta, com possibilidade de ser interpretada de mil modos diferentes sem que a sua irreproduzível singularidade seja por isso alterada. Cada fruição é assim uma interpretação e uma execução, pois que em cada fruição a obra revive numa perspectiva original”.

Realmente o que pode-se observar é que, atualmente, um autor, no ato de realização de sua obra, pode ser direcionado por uma preocupação de estrutura-la em processo de abertura, o que vale dizer, deixa-la em estado de suportar as mais variadas leituras e interpretações.

Nossa época não permite mais, por sua própria contingência histórica de descobertas e redescobertas constantes, que o artista crie algo especificamente completo, acabado, onisciente, com o objetivo de afirmação pessoal e exclusivista, a que o leitor, intérprete ou espectador deva se submeter como mero observador. Isto seria (e o foi por muito tempo) fazer da criação artística em todas as suas manifestações, uma forma de religião, estruturada em verdades absolutas, incontestáveis, dogmáticas.

Ao contrário, dentro deste dimensionamento do ato criador, sendo a obra dirigida naturalmente ao intérprete, cabe a este também o direito de manipula-la e de retirar dela o que considera a sua verdade estética. Posicionamento claramente antecipado a partir de diversos movimentos, desde as primeiras décadas do século XX.

Desde os dadaístas e os futuristas, com suas proposições sustentadas na simultaneidade de uma abertura composicional privilegiando a interação lúdica entre o autor e o consumidor, incluindo jogos sonoros e cênicos, intervenções nos espaços urbanos e espontâneas improvisações, em libertária e  cúmplice realização.

Seguidas de comportamental postura com reflexo politico, no efeito cênico de estar, ao mesmo tempo dentro e fora do papel, no distanciar-se de um personagem vivenciado, fissurando, assim, a apatia acomodada da mera fruição lúdica, num incisivo e habitual procedimento do teatro brechtiano.

TERROR E MISÉRIA NO TERCEIRO MILÊNIO. Livre e aberta releitura de Brecht por onze atores MC's. Sesc/SP, Junho de 2019. Foto/divulgação.

A importância teórica e prática da “obra aberta” está, exatamente, na possibilidade que oferece de uma fruição por “mil maneiras diferentes”, dependendo dos diversos encontros com ela, fazendo-a “reviver numa perspectiva original” a cada contato.

É, num referencial ainda ao filósofo/escritor italiano, como se o criador entregasse ao intérprete as peças de sua invenção, desinteressando-se aparentemente do que lhes venha suceder ou do que daí possa resultar como objeto final.

Poderíamos conceitualizar talvez, de forma mais objetiva, como se o criador mostrasse pelo receptor de  sua obra um respeito novo à  concessão de sua inteligência, dando-lhe uma participação ativa na inventividade, no fazer.

Condenando toda obra de arte que pretenda manter uma significação absoluta e definitiva, como obra “fechada”, Eco aponta a necessária pluralidade de soluções para o intérprete, valendo-se de uma citação de Mallarmé :

Nomear um objeto é suprimir três quartos de prazer do poema, que é feito da alegria de adivinhar pouco a pouco: sugeri-lo...eis o sonho”.

A partir desse procedimento, em que se vai redescobrindo ou recriando o significado de uma obra, somos levados naturalmente a considerar a importância fundamental do método estruturalista, pois não se chegará a uma completa e perfeita compreensão da obra se não se analisar cada um de seus elementos e a função que tem no todo, constituído pelo sistema de relações a ele inerente.

No instante em que tomamos consciência de uma “obra aberta”, cabe-nos levar em conta a validade de uma desmontagem estruturalista, essencial, enfim, para a apreensão e avaliação de seu espectro amplo.

                                        
                                         Wagner Corrêa de Araújo

ALEXANDER CALDER e seus MÓBILES. Uma obra plástica, aberta a diversas leituras. Foto/divulgação.

A TRAJETÓRIA DA REVOLUÇÃO MUSICAL: DO ATONALISMO AOS EXPERIMENTOS ELETROACÚSTICOS

A SAGRAÇÃO DA PRIMAVERA. Reconstituição de 1913/Joffrey Ballet. O divisor da história musical e coreográfica do Século XX. Foto/Divulgação

Para onde vai a música? Na incessante ebulição inventiva e na profusão de tendências da música de nosso tempo, parece-nos que a única resposta possível seja ainda a de Georges Auric  : “Não sei”.

Desde a ruptura com o convencionalismo da escrita harmônica de quatrocentos anos, processada inicialmente a partir de 1912 com Arnold Schoenberg, Alban Berg e Anton Webern, estabeleceram-se novos conceitos e formas de comportamento frente ao fenômeno musical.

Claude Debussy seria, em tese, um dos últimos compositores no sentido tradicional do termo, na passagem entre o século XIX/XX, a propor inovações que ainda alcançassem a aceitação e o aplauso do público. E, com Igor Stravinsky, essa mesma audiência sofreria um impacto mais radical na sua habitual maneira de encarar a especulação musical.

Na Paris de 1913, a première cênica de sua Sagração da Primavera, sob um visceral comando coreográfico de Vaslav Nijinsky, embora não se tivesse afastado completamente dos esquemas e canones estruturais de composição, mesmo assim causou escândalo por seus avanços modais, levando o público e a crítica a um histérico protesto coletivo.

A partir de peças como Pierrot Lunaire, de Schoenberg, o atonalismo começou a propor uma renovação integral, num radicalismo quase agressivo que iria mudar bruscamente a poética musical vigente. Daí até a eclosão da II Grande Guerra, o panorama criador ficaria dividido, além dos dodecafônicos, entre os neoclássicos e os nacionalistas. Com diversidade de experiências a partir da retomada de gêneros antigos, revalorizados por uma visão atual e revolucionária.

No segundo segmento, as várias escolas do nacionalismo musical dariam resultados oponentes, desde uma diferencial inovação sob bases do legado cultural popular, no caso de Villa Lobos  por exemplo, ao conservadorismo ligado a uma estética romântica dentro do realismo social soviético (em casos como o de A. Kachaturian e D.Kabalewsky).

Nos anos do pós-guerra, a revolução musical foi mais longe e a situação era, de certa maneira, caótica em sua diversidade. Com um excesso de correntes musicais concorrendo com a indiferença do público e de uma crítica mais conservadora, resistente à provocação das manifestações da vanguarda (estas ainda como uma projeção dos horrores e da catástrofe do conflito mundial).

ALBAN BERG. Numa pintura, de 1910,  por ARNOLD SCHOENBERG.

Apareceria então a improvisação estilo free-jazz, seguida nos anos 50, pelo surgimento do rock, sustentado por energizados ritmos quase primitivos, levando sequencialmente à geração e ao gênero pop. Refletindo os anseios, a revolta e a postura contestadora através de canções curtas, tornando marcante duas manifestações da civilização tecnológica – a música como fenômeno de cultura de massa e de consumo imediato e a música como arte underground, no seu reflexo da contracultura.

De 1945 ao inicio do terceiro milênio, houve um explosivo dimensionamento estético/musical repartido em tendências diversificadas que vão do dodecafonismo e do neobarroco ao nacionalismo, passando por experimentos seriais, pontilhistas, compósitos e politonais, a extremos contrastantes entre o neo romantismo às sonoridades aleatórias, concretas e eletroacústicas.

Algumas já iniciadas nas primeiras décadas do século XX, outras surgidas no entremeio das duas Grandes Guerras e, finalmente, aquelas sequenciais da sua segunda metade aos nossos dias. Na riqueza deste panorama de invenção e experimentalismo vem ocorrendo um fato de fácil constatação entre aqueles aos quais chega essa incessante e inquieta movimentação musical.

Ora assustando as plateias, com o avanço das buscas investigativas que, a partir daí, assumem uma preconceituosa atitude de repúdio a toda criação que apareça sob o rótulo de vanguarda. Para tais espectadores, “o quarteto schoenberguiano irrita porque não é capaz de provocar o reverie patético em que o ouvinte massificado se delicia quando ouve (sem escutar) música, pois a práxis tecnológica só é capaz de usufruir a arte em estado de nostalgia incurável”, afirma Theodor Adorno.

A ordem musical, de repente, se viu alterada. E com a proposta da performance aleatória haveria, assim, uma total e provocadora reformulação da chamada música de concerto. Através da participação ativa não só na fruição mas se estendendo mesmo à colaboração autoral, quase numa condição sine qua non da sua própria razão de existir.

O regente desceria do podium, trono até então sagrado e inatingível, conclamando a plateia a compartilhar, em pulsão coletiva, da execução. O espectador deixaria seu estado de acomodada contemplação e de devaneio e, ao subir ao palco, dividindo ou tomando o lugar do maestro, manipularia também os instrumentos acabando, em síntese, por completar a obra musical, deixada propositalmente incompleta pelo compositor.

Assim se abriram as portas para a música concreta com pesquisa e experimentação interativa de elementos sonoros, onde o ruído atingiria  um papel privilegiado na elaboração final da “partitura”. Tendo seus precursores nos dadaístas e nos futuristas com suas inusitadas colagens cênico-musicais usando barulhos urbanos (buzinas, sirenes), máquinas industriais e aparelhos domésticos.

Havendo que se destacar, aqui, o trabalho isolado de Edgard Varese, acentuadamente experimental e antecipador da música concreta e que acabaria indo mais longe ainda com a descoberta da música eletroacústica. Sendo, enfim, capaz até de se converter num multifacetado espetáculo cênico promovendo o encontro de diversas linguagens e, sobretudo, antenado com a realidade político-social da contemporaneidade.

                                             Wagner Corrêa de Araújo

IGOR STRAVINSKY E EDGAR VARESE. Dois mentores da revolução musical no século XX. Foto/Divulgação.

II - DO LIVRO E DO PALCO ÀS TELAS : A PALAVRA IMAGÉTICA NO CINEMA

O SANGUE DE UM POETA. Filme literário autoral de Jean Cocteau. 1932. Foto/Divulgação.

Para contextualizar o papel da palavra literária ou teatral no cinema, temos que remontar aos primeiros tempos da cinematografia falada.

Antes havia a inserção de pequenos textos ou diálogos que concorriam para o melhor entendimento dos filmes silenciosos, embora fosse reconhecida a prevalência absoluta das imagens em movimento que, apesar de sua mudez, prescindiriam de qualquer esclarecimento verbalizado.

Este suporte imagético que, no cinema mudo, era carregado de alta expressividade no gestual e na movimentação cênica, foi praticamente submetido a uma autêntica verborragia na inicialização do sonoro. Fator que, em suma, transformava a narrativa fílmica em subliterata teatralidade.

Sendo capaz mesmo, por força avassaladora, de jogar ao chão o já reconhecido domínio de notáveis atores e diretores, além de movimentos, que tinham alcançado sua autonomia estética. Veja-se, por exemplo, o apogeu de clássicos do expressionismo alemão, em plenos anos 20.

Durante um certo período esqueceu-se que o cinema não é uma arte exclusiva da palavra mas, sobretudo, da imagem. Capaz de dizer muito mais que um texto e com força tal que o cinema sonoro acabou descobrindo a grandiosidade do silêncio (Ingmar Bergman tornou-se um referencial neste formato de exploração da imagem, tornando desnecessário o  primado do substrato verbal).

O cinema tem, antes de tudo, seu élan maior numa linguagem artística visual. Desde o pensar significativo de um múltiplo criador Jean Cocteau - “Um filme é uma escritura em imagens”- ao conceitual teórico de Alexandre Arnoux : “O cinema é uma linguagem de imagens com seu vocabulário, sua sintaxe, suas convenções, suas elipses, sua gramática”.

No amplo dimensionamento das relações aproximativas do cinema à literatura, há uma corrente deveras proeminente – a do filme propriamente literário, assim direcionado neste conceitual por seus próprios autores, não partindo de qualquer obra preexistente.

São todos aqueles filmes com argumentos livrescos, propósitos e técnicas da escritura artística, em suma seriam autenticas obras literárias surgidas, substancialmente, da utilização dos recursos técnicos do cinema.

Muitos destes filmes literários podem ser posteriormente publicados em livro, à parte, que continuarão a sobrever isolados da tela. Exemplos são os mais diversos : “O Ano Passado em Marienbad” (Alain Resnais/Robbe-Grillet), os filmes de Jean Cocteau (“Le Sang d’un Poète”, “Orphée”, “Le Testament d’Orphée”), mais a maioria das  obras de Ingmar BergmanJean Luc GodardFederico FelliniMichelangelo Antonioni, W.Fassbinder, entre muitos outros cineastas.

HEIMATT, A OUTRA TERRA. Último filme de Edgar Reitz exibido no Brasil. 2013. Foto/Divulgação.

E, no Brasil, o modelo ideal é “Deus e o Diabo  na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, calcado em tradições orais populares e pleno de inventividade, colocando-se mais perto do universo ficcional de Guimarães Rosa que as transposições fílmicas de seu contos e romances. Dentre estas, um destaque é, sem dúvida alguma, “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, por Roberto Santos.

Outro dado imprescindível é a importância que hoje alguns cineastas vem dando ao espectador como participante/consumidor da obra cinematográfica. Antecipando Umberto Eco, Serguei Eisenstein, o famoso revolucionário  da estética do cinema,  já acreditava que “o espetador de um filme era, de certa forma, especialmente chamado a usar sua imaginação a fim de criar sua própria experiência a partir da história”.

Dentro desta tendência, dois cineastas do novo cinema alemão surgido nas últimas décadas do século XX – Edgar Reitz  e Alexander Kluge - merecem ser citados pela ousadia nas proposições interativas cineasta/espectador.

Para eles, o fundamental está em fornecer ao espectador/consumidor uma obra, pode-se dizer, inacabada ou aberta às diversas possibilidades interpretativas, deixando o filme de ser um mero deleite lúdico/subjetivo para alcançar, enfim, uma transcendência político/social:

O filme não nasce na tela mas na cabeça do espectador e as imagens flutuam livremente na cabeça do personagem e também na cabeça do espectador que, no fundo, é o que representa o papel principal”. 

                                              Wagner Corrêa de Araújo                                  

MORTE EM VENEZA. Emblemática versão de Luchino Visconti a partir de Thomas Mann. 1971. Foto/Divulgação.

DO LIVRO E DO PALCO ÀS TELAS : 1 - O PROCESSO CRIADOR NA ADAPTAÇÃO FÍLMICA

VIDAS AMARGAS. De John Steinbeck por Elia Kazan. 1955. Foto/Divulgação.


O momento capital nas complexas relações cinema/literatura/teatro é, exatamente, o procedimento técnico relativo à adaptação propriamente dita da obra literária ou teatral. É nessa hora que o roteirista vai demonstrar a sua força criativa ou a sua incapacidade em captar a essência dramatúrgica e a tessitura narrativa do mundo ficcional, gerado cuidadosamente pelo autor/inventor.

Vamos abordar aqui três ângulos diferentes na transposição cinematográfica da matéria ficcional, seja da literatura seja do teatro : o tempo de um filme, o texto-diálogo e a interatividade do espectador na continuação/criativa do filme ou da peça, entendidos como uma obra aberta.

Em primeiro lugar, o tempo ou, melhor, a temporalidade circunscrita do filme. Em regra, a obra fílmica quase nunca extrapola a duração média de duas horas (com exceções, e muitas, na verdade) significando isso então o maior peso que recai sobre o roteirista/adaptador.

Em outras palavras, exemplificando na transcrição cinematográfica de determinados clássicos literários onde quinhentas páginas terão que, forçosamente, se enquadrar em duas ou três horas de cinema. Se um volume da espessura de Guerra e Paz e do dimensionamento de Os Miseráveis, ou de peças longas como Hamlet, em seus cinco atos, fossem seguidos à risca pelo roteirista, isto demandaria, no mínimo, infindáveis horas de projeção.

E quando esta linhagem adotada é sequencial na fidelidade a um original, evitando cortes, o fracasso é o resultado mais imediato. Nenhum espectador é obrigado a suportar detalhes mínimos e cronológicos de obras literárias, extensas e minuciosas, levados indiscriminadamente à tela o que, evidentemente, não ocorre no ato da leitura sujeito a pausas voluntárias.

ANO PASSADO EM MARIENBAD . De Alain Resnais com roteiro Robbe-Grillet. 1961. Foto/Divulgação.

Talvez seja este o aspecto que tenha desencorajado e tornada raríssima a transposição de complexos universos ficcionais como o de Marcel Proust sustentado em detalhes e cenas prolongadas. Ostensivamente assumidos quando o comportamento psicofilosófico, prevalente sobre a simples ação, é  a estética formal de oitenta por cento da saga Em Busca do Tempo Perdido.

Por outro lado, pode-se adotar um ponto de vista como o de Elia Kazan que transformou o romance de Steinbeck  (East of Eden) em instigante obra prima, aqui titulada Vidas Amargas (chegando, mesmo,  alguns críticos a considerarem-na quase superior ao original), usando apenas a parte final do portentoso livro.

Numa história que abrangia três gerações em período centenário, o cineasta escolhendo apenas os dois últimos capítulos, em cerca de duas horas de projeção, focando nos últimos personagens da linha descendente familiar – os netos Cal e Aron, atingiu mais incisivamente o espectador que a integralidade do romance inspirador.

Exemplos claros do procedimento inverso são o  Ulysses de Joyce e o épico ficcional contemporâneo do Rosa da prosa O Grande Sertão : Veredas, ambos ficando aquém da qualidade inventiva e contundente do original, na releitura de Josep Strick  (Alucinação de Ulisses, 1967) e no convencionalismo acomodado dos Irmãos Pereira, em 1965, para uma obra mestra na busca inventiva de linguagem literária e metafísica. Num Grande Sertão que no teatro, meio século depois, aí sim,  alcançaria uma visceral e reflexiva incursão nos cânones de um mistificador mor do oficio literário,  pelo olhar provocador de Bia Lessa. 

Para fazer frente ou, pelo menos, tentar fugir à pressão da cronologia e da fidelidade na adaptação literatura>cinema, alguns cineastas e os roteiristas adaptadores tentaram avanços numa possível saída através do antienredo aplicado no antitempo.

E foram os partidários da transformadora corrente ficcional - o “nouveau roman” - os artífices do desafio pela eliminação literal das noções de tempo, enredo linear e até dos diálogos e personagens, concorrendo, sobremaneira, para o aparecimento de cineastas como Alain Resnais, exemplares na tendência de libertação dos cinema de quaisquer contingências naturalistas.

Resnais trabalhou várias vezes com um dos principais nomes daquele movimento literário – Robbe-Grillet, sendo os próprios romances deste último absolutamente cinematográficos. A realização máxima da parceria Resnais/Grillet foi um filme (L’Année Dernière à Marienbad) perfeito na sua “tentativa de se construir um espaço e um  tempo completamente mentais”.

Outro exemplo na filmografia de Resnais é o bem sucedido de público (ao contrário de O Ano Passado em Marienbad) Hiroshima, Mon Amour, onde a evocação do tempo era feita em três momentos – o tempo museológico (trechos documentais), o tempo do esquecimento e o tempo do amor presente, partindo do livre entrecho da novela de Marguerite Duras.

Reconhecendo um certo hermetismo nessa corrente fílmica, o próprio Resnais afirma em relação ao Ano Passado em Marienbad, antecipando conceitualmente o impacto que viria do ideário teórico propugnado na “Obra Aberta”de Umberto Eco:

O monólogo interior nunca está na banda sonora, está quase sempre na imagem que, mesmo representando o passado, corresponde sempre ao presente na mente do personagem”.

(Leia a sequência na parte II – Do Livro e do Palco às Telas : O Poder da Palavra Imagética no Cinema).

                                              Wagner Corrêa de Araújo

HIROSHIMA, MEU AMOR. De Marguerite Duras para Alain Resnais. 1959. Foto/Divulgação.

A MÚSICA DOS OLHOS : UMA BREVE TRAJETÓRIA DA TRILHA CINEMATOGRÁFICA

ALEXANDER NEVSKY. S. Eisenstein, 1938. Trilha de S. Prokofiev. Foto/Divulgação.


Veja o  filme, leia o livro, ouça o disco. Embora o cinema inspirado em obras literárias atraia maior legião de fãs que correm atrás dos livros transformados em roteiros para a tela, as trilhas sonoras também ocupam um lugar à parte na preferência de muitos espectadores, não necessariamente integrantes do universo musical.

A música sempre esteve indissoluvelmente ligada à trajetória histórica do cinema. Desde as primitivas experiências de Meliès e Lumière já se sentia a necessidade premente de cobrir o silêncio das imagens através de um acompanhamento musical, com músicos solistas (na maioria das vezes ao piano) ou através de pequenos conjuntos orquestrais.

Neste repertório inicial, populares temas musicais de compositores românticos, de Rossini a Johann Strauss Jr passando por Offenbach, num desfile de galopes, valsas, marchas e aberturas. Mas a primeira partitura concebida especialmente para o cinema apareceu, em 1894, nos pequenos filmes denominados “Pantomimas Luminosas”, de Émile Reynaud, constituindo-se de algumas variações para piano, por Gaston Paulin.

Durante um longo período, o problema maior foi o da sincronização de música/imagem. Era tão complexo isto que o francês Grimoin Sanson chegou a sugerir a projeção em primeiro plano da batuta de um maestro, orientando assim os músicos que ficavam sempre em posicionamento inferior ou lateral à tela. E aí vem um detalhe pitoresco, o aparecimento de guias musicais para o cinema, com indicação de trilhas sonoras ideais para as cenas de amor, riso, violência, crime ou morte.

Alguns curiosos exemplos : catástrofe (abertura Tannhäuser, de Wagner), cena dramática ("Sinfonia Patética", de Tchaikovsky), atmosfera solene (abertura Oberon, de Weber), cena sinistra (“Quadros de uma Exposição”, Mussorgsky/Ravel), aparições mágicas (“Uma  Noite no Monte Calvo”), lutas ("Dança Eslava, opus 15", de Dvorak), paixão amorosa ( Reverie, de Schumann).

Outra novidade surgida foi a de partituras incidentais montadas à base de fragmentos de vários autores, numa autentica salada musical, sem qualquer critério estético no entremeio de estilos e de épocas. E o primeiro compositor importante a escrever para o cinema foi Saint-Saëns, no filme “O Assassinato do Duque de Guise”, realização de Henri Lavedan, em 1908.

O CANTOR DE JAZZ. Al Jolson no primeiro filme sonoro, 1927. Foto/Divulgação.

A partir daí, a adesão dos compositores foi maior. Mas a dessincronização sons/imagem continuava a dar muita dor de cabeça, além de sugerir loucas imagens se os acordes ou os ruídos viessem atrasados. Quando, em 6 de outubro de 1927, estreou “O Cantor de Jazz” nascia, então,  o cinema falado. Sendo esta uma de suas primeiras grandes revoluções, não se separando mais música e cinema e surgindo enfim a trilha sonora exclusiva para a tela.

Chegando esta quase a ser considerada como a música sinfônica popular de nosso tempo, numa carona comum a partir do sucesso comercial de muitos filmes. Afinal, a trilha sonora passou, às vezes, a se aproximar do mesmo peso de grandes obras musicais, com estilos de escrita composicional que vão da linguagem do romantismo às mais sofisticadas tecnologias electro acústicas impulsionadas a partir do século XX.

Basta ouvirmos atentamente partituras elaboradas pelos precursores deste gênero, na maioria músicos europeus de formação erudita, obrigados pelos conflitos pré e pós Guerra Mundial a migrarem para a América do Norte. Desligando-se das imagens projetadas e concentrando-se nas intervenções musicais é como se, na verdade, estivéssemos numa sala de concertos.

Um exemplo clássico é a partitura de Max Steiner para “E O Vento Levou”, de 1939, com seus leitmotivs românticos e dramáticos. Sem deixar de citar as inspirações sinfônicas de E.W. Korngold, Dimitri Tiomkin, Miklós Rózsa, Franz Waxman, seguidos neste percurso por Maurice Jarre, Elmer Bernstein e Alfred Newman, para chegar à originalidade epigonal de autores como Bernard Herrmann, Nino Rotta, Ennio Morricone, Michel Legrand, entre muitos outros.

Havendo ainda um outro filão de compositores de reconhecido mérito histórico, com algumas raras mas bem sucedidas incursões em obras autônomas para trilha cinematográfica como S.Prokofiev, D.Shostakovich, A.Honneger, A.Copland. E, aqui, Villa-Lobos na preciosa colaboração para o “Descobrimento do Brasil”, 1937, de Humberto Mauro.

Há que se lembrar também do substrato sonoro composto ora por excertos sinfônicos, ora por temas eletrônicos ou simplesmente pelos uso antológico de canções. Uma tendência fragmentária tendo como base principal composições curtas, especialmente do repertório vocal da MPB como aconteceu em grande maioria nas produções brasileiras. Com exceções é claro através de mais sofisticado uso dos recursos sinfônico-cameristicos em trilhas independentes, por exemplo,  de Wagner Tiso e John Neschling.

De volta à ancestralidade das experimentações da sétima arte, naquele momento em que ainda se fazia uso recorrente de músicos nas sessões cinematográficas, continuava prevalente o desafio da incerteza de que haveria um dia a inclusão de acordes sonoros junto aos fotogramas da  película fílmica.

Mas foi, exatamente ali, em plenos anos 20, na fase ainda dos inventos no entorno das técnicas fílmicas de imagem e de som, que o pioneirismo da teórica, crítica de cinema e mentora de experimentos vanguardistas - a francesa Germaine Dulac - foi capaz de fazer a previsão da essencialidade obrigatória da trilha cinematográfica titulando-a, emblematicamente, como "a música dos olhos".

                                             Wagner Corrêa de Araújo


O DESCOBRIMENTO DO BRASIL. Humberto Mauro, 1937. Música de Villa-Lobos.

O CINEMA E AS NOVAS MÍDIAS VIRTUAIS REACENDEM A PAIXÃO PELA ÓPERA

LA TRAVIATA. Filme de Franco Zefirelli. 1982. Foto/divulgação.

Para o coreógrafo Maurice Béjart, o Século XVIII teve o teatro como dono absoluto, o Século XIX foi a era da ópera e o Século XX levou a dança à culminância.

Foi entre as duas últimas décadas da vida de W.A. Mozart (1756-1791) onde surgiriam os primeiros grandes campeões de um repertório operístico que se estendeu até os nossos dias. Passando por seu apogeu criativo no século seguinte quando a ópera ocupava, em caráter lúdico-artístico popular, o espaço que seria a posteriori do cinema.

Havia, então, simultâneas estreias de espetáculos líricos e certos compositores chegaram a números recordes nos teatros do mundo inteiro. Como Bellini, Donizetti e Rossini escrevendo tantas óperas por encomenda que o sucesso fácil tornou-se temporário e acabou por eliminá-las definitivamente do repertório em período relativamente curto. No Século XIX, ir à ópera era o equivalente, em termos de diversão, de ir ao cinema hoje. Havia óperas  e operetas para todos os gostos e, muitas vezes, os compositores faziam concessões para alcançar um público cada vez maior.

A primeira ameaça a este estado de coisas começou com o drama lírico de Richard Wagner trazendo uma nova linguagem e uma verdadeira revolução na concepção do espetáculo operístico. O próprio Giuseppe Verdi, então o ídolo absoluto da ópera italiana na segunda metade do século, acabou cedendo no seu modo de encará-la esteticamente e escreveu um Otelo e um Falstaff mais dramatúrgicos, que surpreenderam de vez o público e balançaram a crítica da época.

Mesmo com o surgimento de outro nome mais mítico, já no início do Século XX, o prestígio absoluto da cena lírica já estava sendo abalado pelo fenômeno do cinema. Até a década de 20, quando a sétima arte começa a se tornar definitivamente arte de consumo, a ópera ainda teve seu grande público que acorria curioso para ver as ainda inúmeras estreias  do gênero cênico-musical. Giacomo Puccini teria sido, assim, o último operista ao inteiro gosto deste público.

Com a inventividade deflagrada pelo modernismo musical, o velho estilo e a fórmula tradicional do bel-canto foram questionados e já nas primeiras décadas começaram a diminuir as temporadas dos teatros dedicadas exclusivamente à ópera. Com a gradual substituição de seus repertórios por espetáculos mais leves como operetas, comédias musicais e, alguns destes, até mesmo por filmes silenciosos acompanhados por um pequeno conjunto orquestral. Começava, aos poucos, a se delinear a era do cinema que, rapidamente, iria se transformar numa arte de multidões, num nível próximo ao que tinha sido a ópera no período anterior.

O cinema, no entanto, não esqueceria a ópera como substitutivo na preferência popular e várias delas foram para a tela em adaptações compactas ou filmagens diretas, mas ainda bastante precárias, de espetáculos ao vivo. Mas todas estas tentativas redundavam em habitual fracasso comercial e desinteresse do público, na condenação da crítica especializada e na própria objeção dos músicos e cantores envolvidos nestas produções para as telas.

A FLAUTA MÁGICA. Filme de Ingmar Bergman. 1975. Foto/Divulgação.

Esta situação perdurou até os anos 70, cometendo até algumas injustiças e imperdoáveis ausências de registros documentais. Como as performances de Maria Callas limitadas a algumas filmagens de concertos em Hamburgo e Colônia e à insegurança de uma transmissão televisiva, com certo amadorismo, de um segundo ato da Tosca, no Convent Garden, Londres 1964, o único legado de atuação cênica, como cantora,  da emblemática carreira da soprano. Alguns anos mais tarde, ela protagonizaria uma Medéia, no filme de Pasolini, apenas como uma excepcional atriz dramática e sem qualquer intervenção que remetesse à sua celebrada trajetória de intérprete lírica.

Nos primeiros tempos do Cinema Mudo, houve uma tendência de aproveitamento dos enredos das grandes óperas, favorecida por uma certa grandiloquência muito em moda nos filmes da época. Carmen ou La Traviata eram as mais adaptadas, de forma sintética utilizando-se inclusive arranjos instrumentais para piano, órgão ou pequenas orquestras. Onde constatava-se a primeira razão alegada para o insucesso da ópera no cinema tendo como base o fato de que o espetáculo lírico era manifestação de peculiar substrato estético, ou seja, tornava-se impossível filmar uma grande ária em sua integridade, fazendo prevalecer a técnica cinematográfica com sua mais breve sequencialidade narrativa e seus instantâneos cortes.

A outra rejeição vinha dos amantes fanáticos do bel-canto, impossibilitados da ovação presencial em cena aberta, perdendo o teatro lírico, com esta ausência, parte substancial dos caracteres de féerie que arrastam, num mesmo impulso, espectadores e cantores em delírio de música, vozes e dramas humanos teatralizados. Para as já grandes plateias de cinema, já desacostumadas com o tradicional espetáculo ao vivo, assustava dispender duas horas ou mais numa sala escura ouvindo extensas  árias e duetos e o desenrolar de um enredo na tela, ao contrário do palco, sem qualquer intermezzo ou entreatos.

Mesmo assim, numa variante ascendente da evolução operística, as operetas e os musicais foram tomando seu lugar, através do melhor dimensionamento de equilíbrio entre leves histórias amorosas, no entremeio de texto falado, canto, coreografia e música. Foi a era de ouro da opereta americana e seus ídolos, entre outros, Deanna Durbin, Maurice Chevalier, e a dupla Nelson Eddy / Jeannete Macdonald. Gênero de grande apelo popular até a  eclosão da Segunda Grande Guerra, estendendo-se até os anos cinquenta quando cedeu lugar aos musicais.

Só a partir do final dos anos 50, cineastas conhecidos como Roberto Rosselini se aventuraram em transcrições da Traviata, dos Contos de Hoffman e até de uma obra contemporânea Jeanne au Bucher, texto de Paul Claudel e música de Arthur Honneger. Abriam-se as portas para Luchino Visconti e Franco Zefirelli migrando de suas notabilizadas régies nas principais casas de ópera europeias para as surpreendentes versões cinematográficas dos anos 70 em diante.

Antecedidas pela possibilidade de transformar um ópera em outra obra priorizando a estética cinematográfica, como foi o caso da Carmen Jones, em 1954, por Otto Preminger. Quase jazzística, com entrecho contemporâneo, inspirado livremente na música de Bizet e na novela de Prosper Merimée.

Iniciava-se um novo tempo no cruzamento de duas linguagens artísticas, em releituras gerando verdadeiras obras primas independentes da rigorosa fidelidade ao original. Como a Flauta Mágica de Mozart/Bergman, com sua incisiva alternância da visão do palco e das reações da plateia. Ou como a bem sucedida experiência conjugando dança, canto lírico, teatro e cinema em West Side Story, de Leonard Bernstein por Robert Wise. Ou do incrível uso, com um referencial de recitativo, do meio termo entre canto e fala modulados musicalmente sob leitmotivs por Michel Legrand e pela cinematografia de Jacques Demy, através de uma quase ópera - Os Guarda Chuvas do Amor.

E, dos anos 80 ao terceiro milênio, com as novas tecnologias, indo do videocassete ao blu ray, para chegar às redes virtuais, em novo surto de ampliação de público, fissurando a noção habitual de ser um espetáculo elitista, atraindo a atenção dos diretores teatrais e constituindo-se, enfim, num inegável renascimento da velha paixão pela ópera.

                                          Wagner Corrêa de Araújo

WEST SIDE STORY. Filme de Robert Wise.1961. Foto/Divulgação.