A partir das primitivas experiências cinematográficas, na última década do século XIX, já nas incursões de Georges Méliès, o balé com formas clássicas se fez várias vezes presente através de divertimentos coreográficos de caráter sério ou em pantomimas burlescas. Como nas antigas sombras chinesas nas quais a dança das silhuetas era acompanhada por músicos ou por pequenos conjuntos orquestrais, o mesmo ocorreria com estes filmes.
Com o gradual desenvolvimento da “sétima arte" a dança
continuou como parte integrante das obras cinematográficas alcançando similar posição
destacada das óperas e dos romances transpostos à tela. Inclusive, tendo como
base o movimento do corpo humano encarado inventivamente pelo coreógrafo/criador,
tornou-se motivo de surpreendentes efeitos videográficos mesmo sem grandes
preocupações com o ritmo, este essencial para o desenvolvimento da trama
romanesca, na média das duas horas de um filme normal.
A dança se impunha dependendo da maior ou menor expressividade
da coreografia, havendo apenas o difícil problema da sincronização do som e da
imagem no cinema silencioso. O regente teria que conhecer perfeitamente o filme
para saber em que exato momento deveria mudar o tempo ou o movimento. E até
sinais foram colocados em determinadas películas, para orientação dos músicos.
O principal problema da dança no cinema continua sendo ate hoje a maneira
como ela deva ou não ser tratada. No cinema documentário é natural que o objetivo
seja preservar um determinado evento histórico, social ou artístico. Assim, a
filmagem de atuações dos grandes mitos da dança do século XX permitiu que as
futuras gerações tivessem, pelo menos, uma ideia do que representaram para uma
época esses catalisadores de êxtases coletivos. Desde Nijinsky, Pavlova, Isadora, no passado, Nureyev, Margot Fonteyn, Plissetskaya,
Baryshnikov, em tempos mais próximos de nós.
A simples filmagem documental de balés oriundos dos palcos,
por outro lado, pode cair em medíocre passagem para a tela de peças quase lugares
comuns do repertório popular e historicista da dança. Tornando necessário que o
olhar mais atento do cinegrafista tenha uma visão absolutamente livre do
tradicionalismo nas suas tomadas e movimentos da câmera, a partir da ideia de
um espetáculo circunscrito às medidas limitadoras de um palco de teatro.
A dança na caixa cênica tem existência autônoma e sua transformação em filme não lhe acrescentará
nada, se não houver o ponto de vista criativo-estético do cineasta,
principalmente se considerarmos o elo profundo que une, numa mesma emoção coletiva,
dançarinos e espectadores (cortado em grande parte no cinema, pela ausência
física dos primeiros).
É o que nunca aconteceu com a dança pensada exclusivamente em moldes fílmicos e que gerou inesquecíveis momentos nos anais do cinema. Através de coreografias grandiosas em termos de cenografia trazendo números quase infinitos de
bailarinos, assim vistos pela profunda perspectiva dos ambientes faustosamente
decorados, na prevalência de planos gerais e tomadas em câmera alta. Exemplos perfeitos foram os de Busby Bekerley, talvez o coreógrafo
máximo da fase áurea do cinema musical/dançante, e os filmes com Fred Astaire e Gene Kelly (mais ricos em movimento e ritmo que em cenas imponentes).
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BODAS DE SANGUE, de Carlos Saura. 1981. Foto/Divulgação. |
Coreograficamente valem ser lembrados filmes musicais para
sempre inscritos na memória popular e nas enciclopédias de cinema. Indo do Ballet
Mécanique (Fernand Léger/George Antheil –1924) ao West
Side Story (na versão de Robert Wise
de 1961), passando por Bob Fosse (All That Jazz, 1979) além
dos filmes coreográficos de Carlos Saura.
Chegando ao cinema de animação com Fantasia (1940), de Walt Disney, em três retratos coreográficos a partir da Pastoral de Beethoven, da Sagração de Stravinsky e da Dança das Horas de Ponchielli, e ao Norman McLaren do curta Pas-de-Deux, de 1968.
Hoje, varias abordagens estéticas se confrontam face à dança
e seus desafios no relacionamento com a “décima musa” de Cocteau. O cinema
documentário propriamente dito no registro dos grandes balés clássicos de
repertório e performances ora folclóricas ora contemporâneas, além das
biografias de mitos populares interpretadas por ídolos do balé, de Nureyev em Valentino ao Nijinsky
pelo bailarino Gregory La Peña, além
de atuações como ator/bailarino por Baryshnikov.
Na aproximação destas duas linguagens – dança/cinema – muitos
foram os maus resultados. Obras imortais do repertório perderam seu vigor
original na transposição para a tela, quando houve um perceptível mau uso de
efeitos especiais e trucagens, tornando os intérpretes/bailarinos meros artifícios das técnicas cinematográficas ao fazer prevalecer uma linguagem artística sobre a outra.
Mas ao mesmo tempo com os recursos dos meios virtuais,
seguindo-se aos inúmeros registros do videocassete ao blu ray, hoje a dança faz parte de nosso cotidiano domiciliar,
especialmente neste momento de crise sanitária e isolamento pandêmico.
Que, por um lado, nos privou do contato presencial das salas
de teatro e de cinema mas possibilita, em tempo real, a mágica envolvência em catarse
coletivo na ambiência intimista de nossas casas, numa ansiosa e definitiva pulsão a la “grand jeté” no balé das viagens pelos
espaços siderais da mente.
E na constatação de que a dança não é apenas "uma música que
se vê" mas, também, ainda na simbologia das palavras poéticas de Paul Valéry, “o mais puro e completo
ato das metamorfoses”.
Wagner Corrêa de Araújo
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O SOL DA MEIA NOITE. Filme de 1985. Baryshnikov e Gregory Haynes. Foto/Divulgação. |
Excelente resumo introdutório das relações muito próximas e ricas entre o corpo e a câmera em movimento, cinedança. Vou repassar para meus alunos, claro.
ResponderExcluirE, so mesmo tempo que curioso, também temendo esse próximo remake do inigualável West Side Story exatamente porque dirigido pelo grande realizador Robert Wise em conjunto com o grande coreógrafo Jerome Robbins, formando uma dupla perfeita. Será preciso?