DON GIOVANNI : CHARME CÊNICO NO ENTREMEIO DE DESLIZES NA PERFORMANCE VOCAL

Don Giovanni/Mozart. Direção cênica-André Heller Lopes. TMRJ. Julho/2022. Fotos/Daniel A. Rodrigues.


A ópera “comme il faut” volta, finalmente, ao palco do Theatro Municipal sustentada numa bela concepção cênica/direcional (André Heller-Lopes) mas sem se aproximar do ideal perfeccionista apresentado pela composição de Mozart, pela não uniformidade vocal qualitativa entre seus oito intérpretes/solistas.

Don Giovanni é uma das mais exemplares criações operísticas do período clássico e que, através de seus mais de dois séculos (1787 foi sua première no Teatro Nacional de Praga com regência do próprio compositor), nunca perdeu seu apelo popular. Ampliado, inclusive, quando chegou ao circuito cinematográfico a sua magnífica versão como filme-ópera, sob paisagem realista, por Joseph Losey, em 1979.

Sendo esta ópera inspirada, no libreto original de Lorenzo da Ponte, a partir de livres sugestões do enredo de duas peças – respectivamente de Molière e de Tirso de Molina. Onde, em tom fabular, são narradas as incursões de um personagem titular ao mesmo tempo sedutor, lascivo e diabólico, em suas maquinações amorosas. Valendo-se sempre de sua posição aristocrata, que acredita ser por “injunção divina”, na prevalência de seu signo do domínio e da submissão.

Muito oportuna para os tempos que estamos vivendo em sua identificação com supostos líderes políticos que só seriam capazes de parar suas ações sinistras através de punições post-mortem advindas do reino das sombras. Outra referência ao nosso cotidiano social estabelecida pela direção cênica é a inscrição, no espaço reservado às legendas, das escabrosas estatísticas brasileiras da opressão masculina através de estupros e do feminicídio. Com uma restrição apenas na sua formatação comunicativa, inoportuna enquanto os cantores ainda estavam em sua última cena.


Don Giovanni. Ludmilla Bauerfeldt como Donna Anna. TMRJ. Julho/2022. Fotos/Daniel A. Rodrigues.

O destaque maior nesta produção de Don Giovanni está, sem dúvida, na envolvente plasticidade de seu pictórico jogo cenográfico (Renato Theobaldo) com cortinas em planos tridimensionais tendo como tema a fachada e os interiores da Catedral de Sevilha. Integrando-se funcionalmente com a elegante solenidade e bom gosto de evocativos figurinos (Marcello Marques) sem rigorismos de época. Bem equalizados em sua integração na paisagem cênica através das ambientais variações luminares de Fabio Retti.

A acurada regência de Tobias Volkman mais do que habilita uma possível volta sua como titular da OSTM pela percepção audível de um crescimento nos resultados sinfônico/musicais, com a chegada de novos integrantes aos seus diversos naipes. Extensivo também aos recentes preenchimentos do Corpo Coral, sempre no experiente preparo de seu ensaiador Jésus Figueiredo.

Quanto às participações incidentais de bailarinos na trama da ópera, há que se notar uma apenas correta atuação da EEDMO em espontâneo gestual camponês ao lado de uma equivocada conexão, entre sombras infernais, da branquitude celestial das Willis de Giselle, parte delas inclusive travestida, com a soturna cena do questionamento tumular de Don Giovanni pelo espectro do Comendador.

Na descrição da performance atoral dos cantores esta foi mais bem equalizada e energizada pelos propícios direcionamentos cênicos de um experiente regisseur, do que por boa parte dos deslizes interpretativos individuais referentes especificamente à parte do canto. A começar dos papéis menos relevantes cuja atuação vocal meramente convencional não chega a interferir na sequencialidade qualitativa da narrativa, como as mais instantâneas personificações dos baixos Pedro Olivero (Commendatore) e Murilo Neves como Masetto.

Seguindo-se as duplas de personagens com mais incisivo destaque na definição não só do traçado cênico como o musical da ópera. No flagrante contraste entre o aquém do auge como tenor de Fernando Portari (Don Ottavio), num lastimável desempenho vocal em árias tão populares como Il mio Tesoro e Dalla sua Pace, e uma geração ascensional no universo lírico brasileiro. Como a Zerlina de Sophia Dornellas surpreendendo pela jovialidade representativa da atriz/cantora num timbre promissor de soprano, o mesmo não acontecendo com a instabilidade e a carente projeção da voz do soprano Claudia Riccitelli numa desastrada Dona Elvira.

Enquanto o Leporello do barítono Homero Velho tem uma presença convincente com seu senso de comicidade irônica formando uma dupla idealizada com o sarcástico Don Giovanni do baixo-barítono Homero Perez-Miranda, ambos unívocos na dominância cênica. Mas o mesmo não se pode dizer de suas tessituras, por vezes, oscilando no completo delineamento ora como baixos ora como barítonos.

Completando o elenco, aquela que pode ser considerada a prima donna da noite - Ludmilla Bauerfeldt que faz soar com magnetismo, na voz e corpo, sua Donna Anna. Convicta e absoluta como soprano remetendo àqueles cada vez mais raros cantores líricos estelares capazes, sobretudo, de provocar a potencial catarse de uma obra singular da genialidade mozartiana...

 

                                             Wagner Corrêa de Araújo



    Don Giovanni. Baixo-barítono Homero Pérez-Miranda no papel titular. TMRJ. Julho/2022. Fotos/Daniel A. Rodrigues.

2 comentários:

Anônimo disse...

Excelente. Obrigada.

Anônimo disse...

Teu texto é muito bom. Lamento não ter visto.

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