BREVE INCURSÃO NO LEGADO ANCESTRAL DA MÚSICA BRASILEIRA

LUNDU, numa gravura de Rugendas, 1835. Foto/Divulgação.

A primeira manifestação autêntica em música brasileira apareceu no final do século XVIII com a modinha que os portugueses haviam trazido das terras de além mar. Entretanto, há indícios de outras expressões musicais autônomas já no século XVII, na Bahia e em Pernambuco, ainda não devidamente estudadas.

Quanto à modinha, originária da Europa medieval da época em que os cruzados narravam através de pequenas canções os seus feitos heroicos, ela encontraria, aqui, um ambiente bastante propício à sua transformação em gênero musical de características marcantes no posterior desenvolvimento da música brasileira de raízes populares.

A modinha brasileira teria um acentuado espírito brejeiro, um forte sentimento nostálgico e uma excessiva dose de romantismo, mas plena de um lirismo ardente que, muitas vezes, trazia conotações sensuais. Os títulos traziam sempre um tom de queixa ou de ansiedade por amores impossíveis (“Se Queres Saber a Causa”, “Se Me Desses um Suspiro”) ou de triste conformação pelo amor não alcançado ou que se usufruiu por apenas alguns momentos (“Foi o Momento de Ver-te”).

E era, usualmente, acompanhada pela viola, substituída aos poucos pelo cavaquinho, embora nos salões aristocráticos quem assumisse esse papel fosse o cravo. Havendo uma nítida distinção entre a modinha popular, de caráter  sertanejo e a imperial, bastante influenciada pela música europeia.

Outro gênero musical que predominou na época foi o lundu, nascido nas senzalas com ritmos bem primitivos com forte componente afro, chegando a ser considerado imoral mas que, já o final do Primeiro Reinado, alcançaria também os salões sofisticados. E o mais curioso é que enquanto a modinha iria ter decisiva influencia na música brasileira posterior, atingindo inclusive o século XX, o lundu praticamente desapareceria com o Segundo Império.

Enquanto a modinha e o lundu eram típicas manifestações de uma música com um sentido mais popular, do outro lado, dentro do chamado gênero erudito, o Brasil já tinha começado muito bem a eclosão de um importante e intenso movimento musical barroco em terras das Minas Gerais.

Lobo de Mesquita seria o nome de maior peso entre os compositores barrocos mineiros e pode ser comparado ao Aleijadinho, pois foi tão grande na criação artística barroca como o seu contemporâneo o fora na escultura.

Com a vinda de D. João VI, em 1808, é revelado o talento de um padre mestiço neto de escravos, José Maurício Nunes Garcia, que Sigismund von Neukomm (músico austríaco acompanhante do séquito real) considerou como “o maior improvisador do mundo”. Também da Europa veio Marcos Portugal, renomado compositor português de óperas que permaneceu, no Rio de Janeiro, até a morte na mais absoluta miséria e obscuridade.

Esse foi um período de primado da música sacra, devido à preferencial tendência de D. Joao VI pelas cerimônias e cultos religiosos católicos, numa época em que Cantatas, Missas e Hinos sacros eram encomendados com fiel habitualidade.

SARAU IMPERIAL. Gravura do século XIX. Foto/Divulgação.

Havendo ainda o cultivo da denominada música de salão (de modinhas a lundus) e, com certa raridade, a música de ópera ou de teatro. Que se restringia a apresentações na corte, promovidas por D. Carlota Joaquina, uma espanhola que mandava buscar operistas em sua terra natal Aranjuez ou na cidade de Nápoles.

Mas o Brasil só viria a ser conhecido musicalmente, em nível oficial e além mar, com Carlos Gomes e o seu Il Guarany, estreando em 1870, no Scala de Milão. O estrondoso sucesso da ópera e o fato de o libreto ter se inspirado em obra literária de autor nacional e com temática indianista fez com que este data ficasse para sempre marcada em nossa história musical.

Embora conhecesse profundamente o métier de uma ópera romântica nascida dentro do estilo verdiano, Carlos Gomes não trouxe com sua linguagem musical nenhuma contribuição definitiva, pois sua criação era calcada em modelos nitidamente europeus. Mas sua passagem na trajetória musical brasileira o marcou como um dos mestres, em sua formatação estética.

Depois de Carlos Gomes, alguns nomes se destacariam por uma bem feita escrita musical embora ainda bastante influenciada pelas escolas predominantes à época – a alemã, a francesa e a italiana. É o caso de Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno, Francisco Braga, Alexandre Levy, Glauco Velasquez. Ou, em caráter especial, com Leopoldo Miguez tendo este estruturado o movimento sinfônico mesmo sob a égide pós-lisztiana.

Mas, enfim, foi através do caráter desbravador e precursor desta geração que começariam a ser abertas as portas para uma linguagem mais independente e que explodiria, nas primeiras décadas do século XX, no caminho autóctone do nacionalismo conectado com a criação musical contemporânea.

                                               Wagner Corrêa de Araújo

IL GUARANY. Cena da primeira produção da ópera, em 1870, Scala di Milano. Foto/Divulgação.

Um comentário:

caminada disse...

Maravilhosa crônica, Walter. Nossa herança afro-ibérica nos legou uma arte peculiar, que foi se desenvolvendo, enquanto brasileira, ao longo do tempo. Temos muito mais a conhecer do Brasil dos séculos XVII, XVIII e XIX.
Forte abraço!!

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