RETROSPECTIVA TEATRAL 2019 - PARTE II : SURPRESAS CÊNICAS EM COMPASSO DE DESAFIO

ESTADO DE SÍTIO / Foto by João Caldas

Foram poucas as montagens de maiores exigências cênicas ou de soluções estéticas realmente inovadoras neste árido embate pela superação da crise. E sem recorrência à solução imediata de produções mega minimalistas ou do enxugamento pelos espetáculos para um solista.

A começar pelo contraponto inventivo da transposição de Gabriel Villela para a obra de Albert Camus – Estado de Sitio, privilegiando, com seu apurado senso dramatúrgico, a plasticidade cênica, de apelo onírico, inspirada em elementos barroquistas e recortes burlesco/circenses. Em oportuno momento, quando o cotidiano de uma nação, sitiada sob o pestilento risco da insegurança político/cultural, torna-se insustentável...

Com identificação aproximativa, o teatro simbolista de Maurice Maeterlinck Interior - na sua melancolizada retratação da trajetória humana sob a implacabilidade do destino, alcança carismático comando mor de Fabianna de Mello e Souza. Transmutando-se em preciosa surpresa estética da temporada, no jogo lúdico, em atmosfera hipnótica, da conexão de atores, máscaras e gestualismo, com referencial de marionetes e de coro do teatro grego.

Da nova geração dramatúrgica inglesa Lucy Kirkwood, com As Crianças, numa progressão dramática, entre culpas radioativas e amargores afetivos, enuncia uma textualidade instigante sobre os erros civilizatórios da contemporaneidade. Em irreprimível performance de um elenco de craques que o fio condutor de Rodrigo Portella explora com sensorial e, ao mesmo tempo, contundente tratamento cênico.

Enquanto uma releitura dramatúrgica, sobremaneira inventiva e questionadora, com significante titulação -  Eu, Moby Dick – da lavra autoral de Pedro Kosovski, em conluio concepcional com a direção de Renato Rocha, integraliza múltiplas linguagens artísticas. Com o olhar armado na problemática do homem e do planeta, mas através de especial direcionamento reflexivo para o patético e obscuro momento político brasileiro.

Outra incursão literária, esta a partir de idéia comum do dramaturgo Pedro Bricio, da diretora Miwa Yanagizawa e da atriz Flávia Pyramo, para um clássico russo - O Idiota de Dostoievsky, na renominação teatral de Nastácia. Sob incisiva gramática cênica, com especular reflexo de instalação plástica, num jogo vivo ator/espectador. Viabilizando um instante feroz de reação do coletivo teatral para os surtos de intolerância da realidade social brasileira no seu confronto com o empoderamento feminino e no implacável trajeto para o feminícidio.

AS CRIANÇAS/ Foto by Victor Hugo Cecatto

Na mesma linhagem de revisão inventiva de clássicos literários, a Companhia Brasileira de Teatro, partiu de uma peça menos valorizada da juventude de Tchekhov, aqui, sob a titulação significante de Por Que Não Vivemos? Nos investigativos questionamentos concepcionais (Márcio Abreu), entre a encenação realista e uma cinética ação interior, com um necessário e reflexivo recado de dias russos como aqueles, vivenciados por nós, entre o desalento, a dúvida e as sombras.

O musical, naturalmente, foi o mais afetado pelas novas políticas culturais de suporte financeiro, notando-se uma retração incrível no numero de espetáculos, em caráter mais flagrante nos palcos cariocas.

Miguel Falabella soube se adaptar à nova realidade e foi responsável por uma das mais diferenciais investidas no gênero, na solidez estética de O Som e a Sílaba, tanto na manipulação de parcos recursos cênicos como na exploração da empatia e da força performática das duas atrizes/cantoras. Numa tessitura de soprano para árias operísticas, Alessandra Maestrini e Mirna Rubin, tomadas da paixão, enquanto artistas e personagens, se entregaram a energizado e fluente diálogo entre a comédia musical e a ópera.

A celebrada dupla Moeller-Botelho preferiu retomar sucessos de seu extenso repertório de musicais, tanto com Cole Porter – Ele Nunca Disse Que Me Amava, no acerto absoluto de um time das melhores expoentes femininas do gênero, ao contrário de Despertar da Primavera, onde contou com um elenco muito jovem sem a força vocal/performática dos intérpretes da primeira versão.

Cabendo a Tadeu Aguiar a mais brilhante criação do ano por uma ultra requintada realização de A Cor Púrpura, outra vez autentificando a credibilidade do musical à brasileira. Na representividade de uma saga da raça negra e do feminino, no revigorante paradigma musical das contendas de uma comunidade em estado de permanente alerta e de irmandade contra a opressão.

Em ano de escassas investidas autorais dramatúrgicas, com melhores resultados no campo dos monólogos, Gustavo Pinheiro, uma das mais gratas revelações da nova dramaturgia brasileira, conseguiu estrear mais duas de suas textualidades teatrais. Relâmpago Cifrado para duas atrizes onde se discute, via sensitiva percepção dramática e caprichado arcabouço cênico, a ética médica sob ecos poéticos drummondianos.

E equilibrando-se entre o teor metafórico e a nuance realista, sua quarta incursão, titulada de Os Impostores, teve, desta vez, a colaboração textual de Rodrigo Portella. No acionamento do onírico e da metáfora, enquanto encenação de um pesadelo realista, onde o empenho direcional de Rodrigo Portella se sintoniza, em habitual e reiterativa segurança, com o processo investigativo da dramaturgia atual.

                                       Wagner Corrêa de Araújo

A COR PÚRPURA/ Foto by Carlos Costa

RETROSPECTIVA TEATRAL 2019 : SOB BRAVO ENFRENTAMENTO PARA TEMPOS NEBULOSOS

CÁLCULO ILÓGICO / Foto - Bia Chaves

Como se não bastassem os inúmeros cortes de financiamento público e novas regras nos incentivos  oficiais, quase inviabilizando de vez a produção de espetáculos, uma onda de irrestrito retrocesso censório, guiada por um doutrinário político obscurantista, colocou em estado de atenção não só a classe teatral mas todo o universo cultural brasileiro.

PARTE I  – SEIS PERSONAGENS EM BUSCA DE UM ATOR

Tornadas raras as montagens mais exigentes aumentou, por sua vez, o número de monólogos. Ocasionados pela precariedade de recursos financeiros e sob o risco da dependência de textos mais originais e performances mais sólidas, afastando cada vez mais o público desta forma de representação dramatúrgica.

Se de um lado houve uma perceptível rejeição, por outro acabou surpreendendo com algumas das melhores criações de toda temporada teatral carioca. Através de propostas incisivas não só por sua abordagem temática como por sua formatação no uso  de soluções cênicas.

Desde a autoficção do dramaturgo uruguaio, Sergio Blanco - A Ira de Narciso, convergindo em carismático aporte sensorial, no embate psicológico e na instigante corporeidade alcançada pela representação de Gilberto Gawronski, sob direção conceptiva de Yara de Novaes.

Ou de Todas As Coisas Maravilhosas, na dúplice textualidade dos ingleses Duncan Macmillan/Joe Donahue, para um teatro empático que se expande em cena e conquista, com as delicadas nuances de seus pequenos mistérios, a adesiva cumplicidade do público, através de potencial interprete (Kiko Mascarenhas) e competente direção  (Fernando Philbert).

E é este ultimo que comanda a perspicaz releitura de Diário do Farol, a partir de João Ubaldo Ribeiro, com um luminoso Thelmo Fernandes no disfarce de feroz manipulador de emoções odiosas que exteriorizam os mais baixos instintos da condição humana. Sob o signo da maldade e das sórdidas injunções políticas de anos sombrios de regime militar, dando um recado de alerta ao Brasil de hoje.

Digressões algébricas com substrato psicopoético conduzem à escritura dramatúrgica, no formato de um monólogo autoral, da atriz Jéssika Menkel com Cálculo Ilógico, sintonizada por provocante performance emotiva, na sempre artesanal condução de Daniel Herz. Num desempenho energizado pela amarração de espontânea fisicalidade gestual enquanto, ao mesmo tempo, sedutor por seu élan introspectivo.

3 MANEIRAS DE TOCAR NO ASSUNTO / Foto de Dalton Valério.

Através de tema, de tanta urgência em momento de temível retrocesso político/cultural, o ator e autor teatral Leonardo Netto faz visceral incursão dramatúrgica e performática com sua peça 3 Maneiras de Tocar no Assunto. Num impactante processo investigativo que se desdobra em três solilóquios, de sequencialidade cúmplice e complementar, sobre todas as formas da intolerância e do não consentimento à condição humana homossexual. Com exponencial parceria de Fabiano de Freitas (direção), um expert cênico na decifração da questão LGBT.

Da concisa transmutação do Otelo shakespeariano para um ator e marionetes, através de Iago, em encenação que prima por seu rigorismo focal para conceder ao personagem titular, em seus divisionismos, veemência política e tônus psicológico, com uma mesma pulsão performática-diretorial e comum autoridade cênica (Márcio Nascimento e Miwa Yanagizawa).

Valendo ainda serem citadas outras personagens, entre outras tantas, presenciais em algumas envolventes experimentações solo. Do difícil suporte da condição homossexual, entre a infância e a adolescência, no revelador memorialismo cênico de Rafael Souza Ribeiro em O Homem Feito.

À transcendente incursão de Gregório Duvivier no processo questionador de Sísifo, em reflexiva e desafiante pulsão que conecta, com sagaz ironia, a ancestralidade mítica e o ideário existencialista da obra de Albert Camus ao vai e vem das absurdidades do momento político brasileiro.


                                             Wagner Corrêa de Araújo


DIÁRIO DO FAROL /  Foto de Rafael Blasi

TEMPORADA DE ÓPERA 2019 : O DESAFIO DAS ADVERSIDADES E AS SAÍDAS ESTÉTICAS

ORPHÉE/ TM/RJ / Foto by Ana Clara Miranda

Diante do desafio do enfrentamento de um tempo de crise que atinge, de maneira visceral, especialmente o repertório da grande ópera com seu habitual substrato de demanda por exigente produção, o Municipal paulista apostou na contemporaneidade, no segundo semestre. E anuncia sete óperas, contrapondo-se a uma programação irregular em 2019, incluindo estreias de compositores nacionais direcionadas, pela primeira vez, àquele palco centenário.

E também é apresentado um novo projeto de repertório 2020 para o Theatro São Pedro, ampliando seu universo normalmente voltado para obras praticamente inéditas ou raras nos palcos de ópera brasileiros, com a inserção de musicais clássicos e de proximidades estilísticas deste gênero, tais como criações de Gershwin (Porgy and Bess) e Bernstein ( West Side Story).

E ali mais uma das óperas de Leos JanacékO Caso Makropulos, de 1926 - foi encenada em première no país, depois de Kátya Kabanová, em 2018, sob o ideário estético de André Heller-Lopes, com direção musical de Ira Levin. Onde prevaleceu a unicidade de um elenco para sustentar uma linhagem vocal de áspero cromatismo, com destacadas performances da soprano Eliane Coelho, do tenor Eric Herrero e da mezzo soprano Luiza Francesconi.

Tardiamente iniciada, a temporada do Municipal carioca trouxe de volta o Fausto, de Charles Gounod, em bela e arrojada montagem, dentro da tradição da grande ópera, oriunda do Festival de Ópera de Manaus, sob direção concepcional de André Heller-Lopes e conduta musical de Ira Levin.

Com uma integralizada performance do elenco protagonista – na requintada vocalização e presencial cênico do baixo-barítono Homero Pérez Miranda (Mefistófeles), na aveludada tessitura do tenor Atalla Rayan (Fausto) e no expressivo fraseado da soprano Gabriella Pace (Margarida).

FAUSTO / TMRJ/ Foto - Ana Clara Miranda

No contraponto deste absoluto empenho artesanal para uma emblemática obra de repertório, a mais celebrada das óperas de Tchaikovsky – Eugene Oneguin - teve uma versão assumidamente minimalista, com boa qualidade musical (Ira Levin) mas sujeita a alguns percalços cenográficos que não chegaram a desmerecer a integralização da montagem.

Valendo citar, sem dúvida, as atuações do naipe feminino protagonista na representação tanto de Olga (mezzo soprano Luisa Francesconi) como de Tatiana  (soprano Marina Considera), equilibradas com a potencialidade imprimida ao personagem do tenor Eric Herrero  (Lenski) e ao papel titular do barítono Homero Velho.

Enquanto o Fausto foi a melhor montagem dentro dos padrões de uma Ópera maiúscula de repertório,  na vertente de um olhar  armado na vanguarda o Orphée de Philip Glass, estreando no Brasil, foi o grande momento como proposta investigativa de ópera/teatro sintonizada com a contemporaneidade.

Na concepção avançada de Felipe Hirsch imprimindo investigativa conexão de linguagens e mídias artísticas a partir do clássico exemplar da cinematografia francesa anos cinquenta, de mesma titularidade e sob autoria do múltiplo talento criador de Jean Cocteau. Nas convictas atuações da soprano Carla Caramujo e do barítono Leonardo Neiva, com uma segura regência de Priscila Bonfim.

Numa escritura musical dividindo-se entre a vocalização recitativa e uma prevalente representação dramatúrgica, capaz de convergir para um conceitual cinético-operístico com transcendente simultaneidade ritualística, no entremeio do mítico e do coloquial.

Anunciada uma ousada temporada 2020 do TM/SP, resta aguardar e torcer para que seu irmão carioca, o TM/RJ, também surpreenda com os seus títulos para um tempo de crise, sabendo sempre, nestas horas, contar com a superação pela  inventividade.

Evitando, assim, os riscos do imediato improviso e das semi-encenações no intuito apenas justificativo de cumprir um calendário. Para, enfim, na resistência de uma bem pensada programação, com funcionais soluções estéticas, privilegiar a ópera na dignidade de um lugar merecido.

                                            Wagner Corrêa de Araújo

O CASO MAKROPULOS/ Theatro São Pedro / SP - Foto by Heloísa Bortz

TEMPORADA DE DANÇA 2019 : RESISTINDO COMO UMA NAU SOLTA AO LÉU

VAI / SÃO PAULO CIA. DE DANÇA / Foto Charles Lima

O ano artístico começou sob os impasses da dúvida e do susto com o anúncio restritivo dos patrocínios e editais em tempos de incerteza e de desconstrução, agravados por uma onda censória de retrocesso e obscurantismo cultural.

Foi o caso do bravo esforço da Renato Vieira Cia de Dança, com Malditos, abrindo a temporada coreográfica, significativamente através de investigativo memorial de sombrios anos por nós vividos, alertando sobre os perigos  de um controverso momento politico brasileiro.

Como  também de um ideário de dança performática que se estende à espontaneidade com que Márcio Cunha imprime, em linguagem corporal seca e direta, à sua obra Barro, identificando-se sempre pela busca de um sensorial esteticismo, nas suas conexões com as instalações plásticas.

Ou do espetáculo - manifesto À Margem, com dois  bailarinos (Bruno Duarte e Tiago Oliveira) e um sampler, amarrados em minimalista delineamento gestual, com agressividade masculina no contraste de corajosa entrega afetiva, sem preconceitos, entre corpos de homens que se tocam.

Neste mesmo discurso de fisicalidade contra a exclusão social, com prevalência de valoração dos artistas negros e das comunidades, flui o meta movimento, de inusitado percurso cênico sob bases urbanas, de Contenção, com oito energizados dançarinos comandados por Renato Cruz em sua Cia. Híbrida.

Das formações cariocas passamos para a mineiridade do Grupo Corpo, no signo de Gil (por Rodrigo Pederneiras) sob diversificado enfoque a partir da imaginária ritualística do candomblé, num conceitual de configuração do impulso físico voltado ao chão, ao solar, ao terreiro, sob as raízes da ancestralidade afro-brasileira.

E para a São Paulo Cia de Dança que surpreendeu, mais uma vez, com uma temporada de estreias nacionais e estrangeiras criadas especialmente para a SPCD, sabendo bem como explorar o convívio de posturas clássicas com exigentes pontuações do movimento dimensionado pela dança contemporânea.

Destacando-se em programas que conectaram a obra da mineira Cassi Abranches em Agora, num tributo ao empoderamento feminino, à do canadense Édouard Lock, em Trick Cell Play, provocando aqui uma irreverente iconologia da grande ópera. Da diáspora dos laços político-sociais nos movimentos migratórios na Odisséia (Jöelle Bouvier) a  um futuro pós-apocalíptico, presencial em Vai (Shamel Pitts).

O LAGO DOS CISNES/ BALÉ TEATRO GUAÍRA/ Foto Maringas Maciel

E de Curitiba, abrindo o cinquentenário do Balé Teatro Guaíra, na remontagem da portuguesa Olga Roriz para a Sagração da Primavera, com o olhar armado no hoje, fugindo à vitimização do feminino, sensibilizado em delirante gramática cênico/corporal. Para encerrar com O Lago dos Cisnes, de Luiz Fernando Bongiovanni, sob incisivo contexto psicanalítico, privilegiando uma vigorosa pulsão criativa sustentada pelo apuro técnico de uma sólida cia. nacional.

Ao contrário do Ballet do Theatro Municipal ainda sujeito às intempéries de uma nau solta em águas revoltas, pós uma insustentável crise financeira, da qual agora parece finalmente poder imergir, ao seu mais contumaz desafio : a urgente renovação de seu naipe de bailarinos engessados no sistema funcional público.

Mesmo assim, entre altos e baixos, resistindo em performances com distante referencial de seus anos dourados como única companhia oficial de destinação clássica do País. Na excepcionalidade do instante de uma digna Coppélia dirigida por Dalal Achcar, com reforço de bailarinos convocados e bem estruturado embasamento do gestual clássico/romântico.

Contrapondo-se a uma equivocada versão (Jorge Teixeira), de pretensiosa intencionalidade histórico/acadêmica, para uma Giselle, com frágil recorrência coreodramática à concepção original de 1841. Completando-se a tradicionalista missão do BTM, por vezes com irregular integralização técnica e instável linhagem estilística, pela participação ocasional em espetáculos operísticos.

E, ainda, sem deixar de citar a luminosa particularidade do teatro coreográfico Romola & Nijinsky, experimentação estética para o livre alcance das atitudes criadoras, da linguagem corporal no seu jogo teatral/gestual à precisão de seus recursos histriônicos e dramáticos, através do tríplice descortino inventor de Regina Miranda, Marina Salomon e Antônio Negreiros.

Em ano difícil para o espetáculo coreográfico, amenizado, em parte, apenas para a importação de cada vez mais raras apresentações internacionais. Com nível mantido no caso de Fuenteovejuna, uma das criações mais emblemáticas da Compañia Antonio Gades, tanto por seu conteúdo libertário quanto por sua refinada concepção coreográfica.

Ao Balé Nacional da China com o celebrado Lanternas Vermelhas, de trama próxima aos melodramas operísticos, através de elementos cinéticos que remetem, além da ópera, aos recursos mímicos e à representação teatral, pontuado por cenas de teatro dentro do teatro e de uma dança potencializada em grande espetáculo. 

                                              Wagner Corrêa de Araújo 

FUENTEOVEJUNA / COMPAÑIA ANTONIO GADES / Foto - Javier Del Real

NASTÁCIA : O DIFÍCIL SUPORTE DA CONDIÇÃO FEMININA


FOTOS/ GUTO MUNIZ

A idéia é deixar o corpo feminino falar e exteriorizar uma violência encerrada em si. Não é apenas uma representação. Essas emoções e sentimentos são reais. Isso pode ser um choque, porque não estamos acostumados a ver mulheres expressar essa dor pesada e profunda - a de uma geração ou a de uma vida inteira”.

Estas palavras da jovem artista, performer e coreógrafa canadense Daina Ashbe para sua obra Serpentine, podem ser um referencial para a releitura dramatúrgica de Pedro Bricio, da diretora Miwa Yanagizawa e da atriz Flávia Pyramo para um clássico da literatura russa O Idiota, de Fiodor Dostoievsky, através do seu primeiro capítulo ficcional.

Agora titulada como Nastácia numa transubstancial substituição do protagonismo do idiota príncipe Michkin pelo de uma mulher que simboliza, no  entremeio do período czarista e de nossa época, a dramática objetificação do corpo feminino, sob ancestrais e insistentes abusos pelo simples fato de ser mulher.

Em postura machista e de exclusão pelo oligarca Totski (Julio Adrião), como convidado na noite de celebração do banquete de aniversario de Nastácia (Flavia Pyramo), quando esta é acintosamente oferecida em lances de aposta monetária a Gania (Odilon Esteves). E surpreendendo, pela frieza da atitude, os convidados da festa. 

Aqui simbolizados pelos espectadores que ocupam o espaço cênico em formato de arena e, assim, integralizando em seu presencial físico-participativo a ausência dos outros personagens da narrativa original.

Através do encontro de dois tipos masculinos e uma mulher em situação de extrema humilhação e que acaba por conduzi-la, enfim, via  relato metaforizado pelo entrecho dramatúrgico, à provocação de um assassinato-suicida, à causa de psicopático e possessivo ciúme por um de seus antigos amantes.

Em potencial grito de denúncia à prevalente resistência da violentação do feminino numa transcendente atemporalidade, extensiva ao trágico e cruel convívio com a opressão e o preconceito que levam ao feminicídio, de tão comum hábito no cotidiano domiciliar e midiático brasileira.

Através de um artesanal comando diretor (Miwa Yanagizawa), na envolvência conceitual de dúplice caixa cênica-instalação plástica (Ronaldo Fraga) integrando-se à indumentária, também da lavra do celebrado estilista. Complementada no forte apelo cinético das video-projeções do artista, dublê de cineasta, Cao Guimarães e das incidências sonoro-musicais da trilha autoral de Gabriel Lisboa.

Conectando-se tudo na funcionalidade dos efeitos luminares (Chico Pelúcio e Rodrigo Marçal) que ressaltam a transparencia de molduras em quadros vazios e uma sugestiva fidalguia no acervo de artefatos de uso doméstico se espalhando numa mesa de jantar e em suportes mobiliários laterais.

A veemente entrega da atriz protagonista (Flávia Pyramo), sustentada por espontâneo comportamental psicofísico (sob aporte gestual de Tuca Pinheiro) insufla uma visceral exteriorização da verdade interior de uma personagem condenada à renúncia e sitiada por todos os lados.

Mas se a atriz imprime densidade absoluta à sua performance, não é menor o grau de coesão e de luminoso alcance no recado cênico dado também pelos outros dois atores. Tanto na nuance de sordidez e cinismo na representação de Júlio Adrião como no sotaque de ingênua mas, ao mesmo tempo, perigosa insegurança na personificação de Odilon Esteves.

Na sua original gramática cênica com especular reflexo de instalação plástica, no alcance da convergência de uma sólida dramaturgia e de um jogo teatral vivo ator/espectador, Nastácia é um contundente contraponto critico, em instante feroz de reação do coletivo teatral para os surtos e os sustos de uma temporada de adversidades que parecem não  ter mais fim...

                                             Wagner Corrêa de Araújo



NASTÁCIA está em cartaz no Teatro III do CCBB/RJ, de quarta a domingo, às 19h30m. 100 minutos. Até 22 de dezembro.

CIA.HÍBRIDA - CONTENÇÃO : EXORCIZANDO O PRECONCEITO E A VIOLÊNCIA SOCIAL

FOTOS / RODRIGO BUAS

Um reencontro do corpo gestual em sua origem biológica mais primitiva, mais visceral, na ancestralidade do movimento, expressando-se através de uma regressão à violência e à selvageria no “devir-animal” deleuziano que ele encerra em si.

“De um corpo confronto, arrastão, corpo que é cúmplice, testemunha e acusação", nas palavras com que o coreógrafo Renato Cruz resume sua mais recente criação para a Cia. Híbrida e que ele titulou significativamente como Contenção.

Um trabalho que, por sua incisiva nuance investigativa do gestualizar, ecoa esteticamente como um ato de protesto, de extrema urgência, para as conturbadas e obscurantistas postulações político-culturais compartilhadas no convívio deste momento de confrontos e contradições da sociedade brasileira.

Capaz de demolir e dessacralizar todos os conceitos acadêmicos da dança a que estamos acostumados como representação lúdico/artística no jogo cênico palco-plateia, intérprete-espectador, provocando a acomodação e jogando muitas verdades em nossa cara.

Indo tão longe quanto as experiências performáticas com o corpo desde Pina Bausch a Marina Abramovic mas, aqui, num devir-animal de busca da corporeidade enraizada ontologicamente na gestualidade regressiva e transgressora, capaz de ativar um ato de reflexão sobre a escalada da violência exposta na ambiência dia-a-dia, entre o domiciliar e o midiático.


FOTO/ RENATO MANGOLIN

Desde os elementos psicofísicos dos conflitos da identidade nos embates com o preconceito de cor e de condição social, ressaltando aqui o presencial prevalente de dançarinos negros e das comunidades. Intimando-nos, literalmente, a tomar partido nesta luta contra as atitudes persecutórias, muitas vezes assassinas (na citação coreográfica de corpos imobilizados), contextualizando, assim, todas e quaisquer formas de marginalização.

Em espetáculo que num espaço cênico, de assumido minimalismo, aberto e vazio, marcado por efeitos luminares mais vazados que focais, é ocupado apenas por espectadores, ora empurrados à parede ou sitiados em compressão física, ora deslocando-se em estado de distúrbio, incitados ou assustados pela proposta performática.

Neste acompanhar de perto a respiração ofegante da representação numa quase troca de suores,  pele sobre pele, de olho para olho, flui o movimento de inusitado percurso cênico, sob uma inicial pulsão pelo rastejamento e sequenciais variações grupais dos oito intérpretes-dançarinos (Daniel Oliveira, Fábio Andrade, Jefte Francisco, Luciana Monnerat, Luciano Mendes, Luidy Trindade, Raphael Lima e Yuri Braga) desde a porta de entrada do teatro.

Conectados num vocabulário próprio de formatação do movimento e de unicidade visual, desde os figurinos de malhas em tons cinzentos ao alcance de uma coesiva espontaneidade, perceptível na vigorosa construção sensorial destas incursões inventivo-experimentais que a Cia. Híbrida faz em linguagem estética inspirada na dança urbana.

Incluindo-se à destreza deste corpo-ação numa minimal dance, uma especial participação criativa de Aline Teixeira, e contando, ainda, com  um energizado score sonoro desenvolvido no entremeio de rupturas de pausas de silêncio a recortes rítmicos eletrônicos com referenciais break-funk.  

Tudo, enfim, conduzindo a uma integralidade técnica e artística que, na geração deste trabalho coreográfico, os levou, este ano, ao bem sucedido projeto Sesc/Parc de la Villete (Paris). E que por seu substrato estético combativo, sintonizado com a contemporaneidade, torna Contenção um espetáculo obrigatório, neste encerramento da Temporada 2019 de Dança.

                                              Wagner Corrêa de Araújo


CIA. HÍBRIDA DE DANÇA / CONTENÇÃO está em cartaz no Espaço Sesc Copacabana, de quinta a domingo, às 20h. 60 minutos. Até 15 de dezembro.

BALÉ TEATRO GUAÍRA – O LAGO DOS CISNES : SOB UM VIÉS FREUDIANO

FOTOS/ CAYO VIEIRA / MARINGAS MACIEL

O Balé Teatro Guaíra encerrou as comemorações de seus 50 anos com a reapresentação da coreografia de Luiz Fernando Bongiovanni para O Lago dos Cisnes, depois de várias turnês com o espetáculo não só pelo interior paranaense como na capital paulista. A Cia estreia também uma nova direção artística através do coreógrafo Pedro Pires que iniciou ali sua trajetória de bailarino como integrante do BTG, nos anos 80 à época de Carlos Trincheiras.

Em tempo de crise, o BTG é um exemplo de resistência e de apuro tecnoartístico entre as companhias oficiais brasileiras, com um seleto elenco de 23 bailarinos absolutamente em forma para o desafio prevalente do ideário de uma dança em moldes contemporâneos, entre novas criações, revisitas e releituras de obras básicas do repertório de nosso tempo.

Este ano tivemos o privilégio de conferir ali uma mais que artesanal e vigorosa Sagração da Primavera, na versão de Olga Roriz, com irreprimível fusão da performance coreográfica com a execução ao vivo da partitura stravinskiana na Orquestra Sinfônica do Paraná, regida pelo maestro de origem alemã Stefen Geiger.  

O coreógrafo paulista Luiz Fernando Bongiovanni já é conhecido ali por suas versões para o BTG sendo as mais  recentes um Romeu e Julieta e uma Carmen sempre sob um novo olhar de tônus diferencial, procurando se ater às linhas básicas clássico -temáticas mas com novos enfoques dramatúrgicos e transmutações musicais. Mas sem perder nunca a base estetizada e as linhas mestras condutoras das obras originais.

E sem radicalizar em certas irreverências, como a de dar outras e exclusivas identidades sexuais aos papeis icônicos femininos como nas criações  do grupo masculino Trockadero ou na reescrita iconoclasta dos balés clássicos por Matthew Bourne's. Mas, aqui, muito mais próximo das personificações psicossomáticas de Mats Ek presenciais no seu Culberg Ballet, nas inventivas transcrições de Giselle, Bernarda Alba, Lago dos Cisnes e Carmen.


A começar neste Lago, na imaginária de uma arrogante Rainha Mãe (Paula Sousa) freudianamente super dominadora e com absoluto controle para um desconfiado Príncipe Siegfried (Rodrigo Leopoldo) e sobre cortesãos submissos, simbolicamente definidos quase como um fetiche (ressaltado na figura de Odile), cobertos sob seu extenso e largo vestido com sutil referencial das protetoras matrioskas.

E que se estende pelo palco, em simbiótico significado, na concepção cenográfica e indumentária de William Pereira. Potencializada na ausência de sapatilhas, com os pés nús e tintas brancas corporais, no lugar dos tutus e penas na representação dos cisnes de dois sexos, emblematicamente escorrendo sob águas, pós fim do feitiço, na retomada das formas humanas na sequência final.

A linha coreográfica privilegia uma vigorosa espontaneidade gestual com recortes irônico/humorísticos na inserção aos movimentos corporais de risadas e sonoridades vocais, especialmente na descontração assumidamente nervosa de um atrevido Rotbarth, mestre na vilania mas ao mesmo tempo dependente afetivo da Rainha, em reveladora e convicta performance do talento promissor de um super jovem bailarino (Vitor Rosa).

Não ficando longe disto as atuações seguras tanto de Rodrigo Leopoldo (Siegfried) projetando um sotaque de carisma psicofísico para um personagem combativo mas enganado por sua indulgência diante da alterativa personificação, com mutável e luminoso dimensionamento psicanalítico, da dúplice face do bem e do mal entre a Odette e a Odile por Gloria Candemil.

Se o minimalismo cenográfico é preenchido na plasticidade visual de cinéticos planos sobrepostos com molduras luminares (Victor Sabbag) abrangendo as passagens entre o castelo e o lago, há pequenos mas quase imperceptíveis desvios na definição das postulações dramatúrgicas nos embates fatalistas entre o feiticeiro Rothbart e Siegfried, nas proximidades do final de quatro atos originais em duas partes concisas, com um intervalo.

Valendo citar momentos ímpares como o celebrado grand pas de deux com referencial moderno (Gloria Candemil e Rodrigo Leopoldo), a interativa participação burlesco/medieval do casal de bobos da corte (Luciana Voloxki e Leandro Vieira) e o inusitado e divertido pas de quatre inversamente masculino com versáteis bailarinos (João Bicalho, Leonardo Lino, Murilo Machado e Rene Sato), provocadores de grande e entusiasta cumplicidade palco-plateia. 

Em espetáculo que o Rio, infelizmente, ainda não viu mas, em caráter comparativo de estéticas diferentes, merecia conferir, como São Paulo que este ano teve simultaneamente três Lagos – O da Paula Castro Cia de Dança, o da São Paulo Companhia de Dança e o do BTG - enquanto ouvem-se rumores de bastidor de um possivel Lago completo com o Balé do Municipal em 2020...

                                           Wagner Corrêa de Araújo


O Balé Teatro Guaíra, com O Lago dos Cisnes, encerrou neste domingo, 8 de dezembro, em Curitiba, a temporada 2019 comemorativa de seu Cinquentenário.

EUGENE ONEGUIN : A ALMA RUSSA EM MONTAGEM INTIMISTA


FOTOS/ GUI MAIA

Enquanto a mais popular das óperas de Tchaikovsky – Eugene Oneguin – tem cerca de quase duas dezenas de montagens previstas na temporada europeia de 2020, é ainda rara nos palcos brasileiros centenários, especificamente dos Municipais carioca e paulista. Que só viram esta ópera em apenas duas montagens, tanto na capital paulista, (a última em 2015) e no Rio (1989) e, agora, com um intervalo de três décadas.

Inspirada numa obra em versos de Alexander Pushkin, e transformada pelo compositor em “Cenas Líricas em 3 Atos e 7 Quadros”, sua estreia foi em Moscou há 140 anos. Cantada geralmente no original russo, ela teve reconhecidos como seus maiores interpretes - Dimitri Hvorostovsky no papel título e Galina Vishnevskaya como Tatiana.

Embora tendo como tema o mesmo enredo da versão liríca, a coreografia de John Cranko celebrizada especialmente por Márcia Haydée no Stuttgart Ballet, usou temas tanto da ópera como de outras composições de Tchaikovsky.

Ao passar um temporada no campo, o aristocrata Eugene Oneguin conhece, através de seu vizinho e poeta Vladimir Lenski, as irmãs Olga e Tatiana, apaixonando-se perdidamente por esta, de espírito romântico ao contrário do caráter  mais frívolo de Olga, a noiva do amigo. Mas ao cortejá-la num baile, despreza o amor de Tatiana e incita o ciúme e o ódio em Lenski, levando a um duelo mortal entre os dois.

Numa produção assumidamente minimalista, a paisagem cênica (Manoel Pucci e André Heller) faz bom uso dos mesmos painéis de espelhos emoldurados com similares arabescos decorativos das colunas laterais do palco. Ora cobertos de folhagens na reprodução dos jardins familiares das duas irmãs, ora vazados em portas no baile do terceiro ato, com pequenas variações no quarto e no gabinete de Tatiana e na cena do duelo.

Com prático aproveitamento indumentário, sob o habitual bom gosto de Marcelo Marques, na reutilização de acervo, para roupas camponesas e trajes formais de baile. Sempre com bem dosados efeitos luminares (Paulo Cesar Medeiros), alternando claros expansivos e sombras focais.

A coreografia (Mônica Barbosa) de valsas, mazurcas e polonaises se limita ao básico em apenas corretas danças características, sendo vibrantes os solos néo-clássicos de Cícero Gomes. Havendo potencial musicalidade no comando orquestral de Ira Levin para a OSTM, com equilibrada sonoridade dos fortíssimos ao intenso lirismo das cordas, combinando com sensíveis solos dos sopros.

Onde o elenco protagonista tem um destaque especial, tanto na representação teatral como na interpretação vocal. Com valorosa participação do Corpo Coral do TM, regido por Jésus Figueiredo e de mais cinco atores/cantores em papéis coadjuvantes.

No contraste da entrega a um jovial significado especular dos anseios adolescentes, na Olga de Luisa Francesconi, com sua bela tessitura de mezzo-soprano, ao lado da pungente expressão dos sentimentos amorosos, presencial e absoluta na longa e melancólica declaração dramática de paixão, na ária da carta de Tatiana, por uma soberba Marina Considera.

Enquanto o  tenor Eric Herrero, no papel de Lenski, prova mais uma vez, a sua irrestrita força vocal ao imprimir tocante pathos na mais célebre ária da ópera, lembrando as alegrias passadas e reiterando um pressentimento trágico às vésperas do duelo com Oneguin.

Oneguin, na performance titular do barítono Homero Velho, tem uma convicta personificação e um desempenho vocal seguro, com destaque no epílogo do IV Ato,  no desespero e dor do dueto que sela a definitiva separação de Tatiana.

Em espetáculo que, enfim, encerra a temporada lírica 2019, com três óperas encenadas “comme il faut” e duas outras mais em formato de concerto cênico, com uma simplicidade funcional e um apuro cênico-musical capazes de fazerem um tributo à partitura de Tchaikovsky e aos versos de Pushkin.

                                           Wagner Corrêa de Araújo


EUGENE ONEGUIN encerrou a temporada lírica 2019 do Theatro Municipal/ RJ, com récitas entre os dias 26/11 e 1º de dezembro.

OS IMPOSTORES : DRAMATURGIA FABULAR PARA ÉPOCAS DE PESADELO

FOTOS/ELISA MENDES

Um estranho e imprevisto visitante que chega do nada e em horário impróprio e que, aos poucos, vai devassando a privacidade domiciliar de um misterioso bunker, perscruta os mais íntimos segredos dos personagens, provoca e reacende desejos, ao mesmo tempo em que deslumbra e causa medo.

Equilibrando-se entre o teor metafórico e a nuance realista, a quarta incursão dramatúrgica de Gustavo Pinheiro titulada de Os Impostores teve, desta vez, uma colaboração textual de Rodrigo Portella que assume, ainda, a direção/concepcional do espetáculo.

Uma abordagem temática que já nos acostumamos a ver em momentos cinematográficos antológicos, com substrato psico - político, do Marcel Carné de Visitantes da Noite ao Teorema de Pasolini. Mas que encontramos também, sob contexto literário, no romance derradeiro de Lúcio Cardoso – O Viajante.

E que nesta idealização cênica remetendo, como nos filmes citados, à ambiência de uma burguesia que insiste em resistir, no entremeio de uma temporalidade de signo pós-apocalíptico, na afirmação de seus privilégios materiais, através de seus requintes de opulência e na prevalência de seus gostos luxuriosos.

Aqui, no convívio comum dos cinco habitantes de morada subterrânea, localizada abaixo da montanha carioca que sediara, em tempos pré-catástrofe, um complexo turístico. Até que chega à porta do bunker um viajante testemunho da derrocada terminal do mundo exterior e acaba integrando, como hóspede, o remanescente núcleo familiar.

Viabilizado na representação dos pais (Tairone Vale e Carolina Prismel), da filha (Pri Helena), do primo (Murilo Sampaio) e da empregada (Suzana Nascimento), aos quais se acrescenta  o visitante (Guilherme Piva) todos em atemporal indumentária (Tiago Ribeiro), sustentada  entre o coloquial e o exótico.

Em simbolização plástica da permanência de elementos residenciais ostentatórios no retrato cenográfico (Julia Deccache) de um palco vazado, expositivo de seus bastidores, até a sua porta emergencial entre o espaço interior e a rua, servindo de entrada para o enigmático emissário.

Estendendo-se à climatização de estilizado espaço ocultista nos funcionais efeitos luminares (Luzia Molinari de Simoni) e às incidências sonoro-musicais de uma original trilha (Marcelo Alonso Neves), sob guia técnico de um controle remoto utilizado pelos atores.

Onde um referencial inspirado no personagem de Molière este Tartufo, com o olhar armado na contemporaneidade, mostra o presencial cada vez mais imanente deste seres messiânicos se julgando detentores da fórmula de salvação para um universo em crise moral. E para os quais só o viés religioso seria capaz de preencher as carências da condição humana.

Uma impostura que disfarça o oportunismo destes manipuladores da verdade ou, numa linguagem terceiro milênio, mestres em fake news. Tão facilmente reconhecíveis e próximos da realidade vivencial de nossas governanças na habitual falácia de seus discursos políticos.

E bem marcada na chegada deste falso profeta que encontra campo propício numa família disfuncional, alienada por sua própria vulnerabilidade e pelo total desconhecimento do que se passa longe de seu refúgio-fortaleza. Em caracterizações alterativas, ora mais visceralizadas ora sob risco de ocasionais descompassos, na dependência de maior força de alguns dos personagens.

Desde um casamento de aparências presidido pelo apático patriarca, com sequencialidade cíclica nos vícios ansiolíticos da esposa, nos conflitos de identidade  sexual do sobrinho e na opressão da classe social de uma governanta/criada .

Sublinhado pelo contraponto crítico dos anseios libertários da adolescente e na corporificação do diabólico e do interesseiro, no jogo condutor de preenchimento dos vazios de cada um dos residentes pelo hóspede maquiavélico.

E é ao confrontar o acionamento do onírico e da metáfora, enquanto encenação de um pesadelo realista, que o comando direcional de Rodrigo Portella se sintoniza, seguro outra vez, com o processo investigativo da dramaturgia atual.

                                           Wagner Corrêa de Araújo


OS IMPOSTORES está em cartaz no Teatro Sesc Ginástico, de quinta a sábado, 19h. Domingo, às 18h. 110 minutos. Até 1º de Dezembro.

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