NASTÁCIA : O DIFÍCIL SUPORTE DA CONDIÇÃO FEMININA


FOTOS/ GUTO MUNIZ

A idéia é deixar o corpo feminino falar e exteriorizar uma violência encerrada em si. Não é apenas uma representação. Essas emoções e sentimentos são reais. Isso pode ser um choque, porque não estamos acostumados a ver mulheres expressar essa dor pesada e profunda - a de uma geração ou a de uma vida inteira”.

Estas palavras da jovem artista, performer e coreógrafa canadense Daina Ashbe para sua obra Serpentine, podem ser um referencial para a releitura dramatúrgica de Pedro Bricio, da diretora Miwa Yanagizawa e da atriz Flávia Pyramo para um clássico da literatura russa O Idiota, de Fiodor Dostoievsky, através do seu primeiro capítulo ficcional.

Agora titulada como Nastácia numa transubstancial substituição do protagonismo do idiota príncipe Michkin pelo de uma mulher que simboliza, no  entremeio do período czarista e de nossa época, a dramática objetificação do corpo feminino, sob ancestrais e insistentes abusos pelo simples fato de ser mulher.

Em postura machista e de exclusão pelo oligarca Totski (Julio Adrião), como convidado na noite de celebração do banquete de aniversario de Nastácia (Flavia Pyramo), quando esta é acintosamente oferecida em lances de aposta monetária a Gania (Odilon Esteves). E surpreendendo, pela frieza da atitude, os convidados da festa. 

Aqui simbolizados pelos espectadores que ocupam o espaço cênico em formato de arena e, assim, integralizando em seu presencial físico-participativo a ausência dos outros personagens da narrativa original.

Através do encontro de dois tipos masculinos e uma mulher em situação de extrema humilhação e que acaba por conduzi-la, enfim, via  relato metaforizado pelo entrecho dramatúrgico, à provocação de um assassinato-suicida, à causa de psicopático e possessivo ciúme por um de seus antigos amantes.

Em potencial grito de denúncia à prevalente resistência da violentação do feminino numa transcendente atemporalidade, extensiva ao trágico e cruel convívio com a opressão e o preconceito que levam ao feminicídio, de tão comum hábito no cotidiano domiciliar e midiático brasileira.

Através de um artesanal comando diretor (Miwa Yanagizawa), na envolvência conceitual de dúplice caixa cênica-instalação plástica (Ronaldo Fraga) integrando-se à indumentária, também da lavra do celebrado estilista. Complementada no forte apelo cinético das video-projeções do artista, dublê de cineasta, Cao Guimarães e das incidências sonoro-musicais da trilha autoral de Gabriel Lisboa.

Conectando-se tudo na funcionalidade dos efeitos luminares (Chico Pelúcio e Rodrigo Marçal) que ressaltam a transparencia de molduras em quadros vazios e uma sugestiva fidalguia no acervo de artefatos de uso doméstico se espalhando numa mesa de jantar e em suportes mobiliários laterais.

A veemente entrega da atriz protagonista (Flávia Pyramo), sustentada por espontâneo comportamental psicofísico (sob aporte gestual de Tuca Pinheiro) insufla uma visceral exteriorização da verdade interior de uma personagem condenada à renúncia e sitiada por todos os lados.

Mas se a atriz imprime densidade absoluta à sua performance, não é menor o grau de coesão e de luminoso alcance no recado cênico dado também pelos outros dois atores. Tanto na nuance de sordidez e cinismo na representação de Júlio Adrião como no sotaque de ingênua mas, ao mesmo tempo, perigosa insegurança na personificação de Odilon Esteves.

Na sua original gramática cênica com especular reflexo de instalação plástica, no alcance da convergência de uma sólida dramaturgia e de um jogo teatral vivo ator/espectador, Nastácia é um contundente contraponto critico, em instante feroz de reação do coletivo teatral para os surtos e os sustos de uma temporada de adversidades que parecem não  ter mais fim...

                                             Wagner Corrêa de Araújo



NASTÁCIA está em cartaz no Teatro III do CCBB/RJ, de quarta a domingo, às 19h30m. 100 minutos. Até 22 de dezembro.

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