“Um anjo com vocação
para demônio”, em suas próprias palavras, e que fez de Maura Lopes Cançado
um enigmático fenômeno literário. Enquanto sua trajetória de vida e de mulher
esteve entre o brilho e o pânico, do espírito libertário à opressão social.
Nascida em privilegiado ambiente familiar de substrato burguês
no interior provinciano das Gerais, para ser mais exato pelos idos de 1929, conseguiu,
entre trancos e barrancos, crises e êxitos, sobreviver até 1993.
Dos tempos de franca ascensão quando integrava a desbravadora
equipe de autores e colaboradores do suplemento literário dominical do Jornal do Brasil, sob a égide de
Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony, entre outros.
Para o avanço ficcional/documentário com dois livros publicados no entremeio de entradas e saídas hospitalares e experiências manicomiais, e ambos - Hospício é Deus
e O Sofredor do Ver - contemplados, à época, pelo interesse
do público leitor e no olhar da crítica especializada.
Significativos pelo teor ensimesmado de relatos eminentemente
confessionais, não só sobre fases de internação e de denúncia dos métodos usados em doenças mentais, mas nos ecos de empoderamento
do movimento feminista. Num tempo em que a corporeidade e o livre arbítrio de
uma mulher ainda se confundiam com luxúria,
lascívia e prostituição, das que escolhiam e afirmavam seu próprios desejos.
Em breve e esquecida obra, relegando ao ostracismo também a sua mentora,
a jornalista e escritora mineira. E que, agora, por iniciativa conjunta da atriz Maria Padilha
e do dramaturgo Pedro Bricio leva à adaptação para os palcos do Hospício de Deus como Diários do Abismo, sob o comando
diretorial de Sérgio Módena.
No monólogo, Maria Padilha assume a personificação desta mulher
cuja trajetória pelos caminhos da insanidade mental fora antecipada por surtos
delirantes de menina e adolescente, dos assédios sexuais à prematura gravidez
aos 15 anos. E que, após bem sucedidas
incursões profissionais de reportagem literária no Jornal
do Brasil, decide se submeter a
tratamentos psiquiátricos dos quais não escapa mais.
Em paisagem cênica concisa (André Cortez) ocupada apenas por
colchões que funcionam como frontispícios frontais, quais portas ou janelas de
um claustrofóbico quarto de hospício, enquanto emolduram passagens da
representação da intérprete.
Na prevalência de uma indumentária (Marcelo Pies) sugestionando
uniformes de interna, com marcações luminares (Paulo César Medeiros) ambientais, ressaltadas nas incidências sonoras da trilha (Marcelo H), nas projeções
textuais ( Batman Zavareze) e em energizado gestual quase coreográfico (Márcia Rubin).
No contraponto de acurado esforço da concepção cênica/diretorial
(Sérgio Módena) para fazer impor maior impulsividade a uma progressão narrativa sob insistente
risco de quedas monocórdicas.
Onde, apesar de uma
convicta entrega de Maria Padilha à performance, com um envolvente presencial
até maior que a da personagem real Maura Lopes Cançado (segundo os que a conheceram de perto, não
era lá tão atrativa e capaz até de posturas desmedidas), a representação acaba não
fluindo em sua integralidade.
Ficando, enfim, distanciada de uma maior identificação do espectador
com o estado de emoção psíquica contextualizado. Sem aquela pulsão artaudiana para que o fundo do poço se
torne visceralmente matéria de reflexão e não apenas outra teatralidade de mais
um caso esquizofrênico.
Wagner
Corrêa de Araújo
DIÁRIOS DO ABISMO está em cartaz no Teatro 2 do CCBB/Centro/RJ,
de sexta a segunda, às 19h30m. 60 minutos. Até 5 de novembro
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