A INVENÇÃO DO NORDESTE: DESCONSTRUINDO O DISCURSO REGIONALISTA

FOTOS/ROGÉRIO ALVES

A nordestinidade, já de longa data, é contextualizada por desgastada estereotipia que compõe um estratificado discurso regionalista através de signos como a seca, o cangaço, o coronelismo, o cabra-macho, a mulher-paraíba, os cordelistas, os messiânicos, os milagreiros, e por aí vai.

Com um jeito de ser diferente nos seus maneirismos gestuais e linguísticos, do sotaque às expressões idiomáticas, na tessitura vocal, com suas rimas e modulações tonais, e na psicofisicalidade arretada. Que faz do nordestino, um forte no seu comportamental de desafio às adversidades de uma região onde a prevalência solar é alegria e dor, entre luz e sombras.

E, ao mesmo tempo, acentua seu complexo de inferioridade quando é encarado apenas por um recorte folclorizado que torna mais árida sua luta por um lugar ao sol na urbanidade civilizatória/tecnocrática da grande metrópole brasileira.

Estigmatizado como protótipo de provincianismo e como símbolo de personagens caricaturizados, no intermédio da valoração atribuída à sua cultura regional, do rico artesanato aos inspirados cantares poéticos e musicais. E no real reconhecimento de mentores da intelectualidade pátria, de Euclides da Cunha a Gilberto Freyre, passando pelo cinema de Glauber e pelo teatro de Suassuna, entre outros tantos.

Pois é pensando neste cidadão brasileiro tão peculiar e tão referencial em nossa cotidianidade que o conhecido Grupo Carmin (RN), já aplaudido por montagem que passou pelos palcos cariocas(Jacy), está de volta. Desta vez indo mais fundo na retomada da temática de enfoque regional, com A Invenção do Nordeste, tendo como pulsão o livro homônimo do historiador Durval Muniz de Albuquerque.

Aqui, na versão dramatúrgica dúplice (ao lado de Pablo Capistrano) do também ator no espetáculo Henrique Fontes, há ainda a participação dos atores Mateus Cardoso e Robson Medeiros, em tríplice representação de uma comédia dramática narrando os preparativos para escolha do protagonista de um filme. Onde o elenco usa os nomes próprios em seus papéis, a saber o de diretor (Henrique Fontes) e dos atores (Mateus Cardoso e Robson Medeiros) que vão se submeter aos testes para atender à demanda de uma grande produtora do Sudeste.

Numa trama autoficcional em que há um incisivo encontro de linguagens em tempo de ensaio, desde a pesquisa iconográfica ao energizado substrato vocal (Gilmar Bedaque) e gestual(Ana Claudia Albano Vieira), incluindo citações audiovisuais (de inserts irônicos do “coronelismo”no Congresso a trechos fílmicos de Deus e o Diabo na Terra do Sol. 

Para isto contribuindo o minimalismo funcional do espaço cênico (Mathieu Duvignaud) como uma sala de estúdio onde a dupla de atores atua, ora em solos, ora em dialetação e até, especularmente, com cenas fílmicas glauberianas exibidas num telão lateral.

Na abordagem dos estereótipos assumidos para o ideário de um personagem nordestino, do retrato verista ao sonhado, em  criticismo desnudado ora com sutis nuances ora com tratamento de ironizada maledicência, para o alcance de um jogo teatral vivo, sob o seguro comando diretorial de Quitéria Kelly.

Compartilhado em cena por um potencializado Henrique Fontes com uma ágil e convicta dupla atoral( Mateus Cardoso/Robson Medeiros), indo do puro deboche à provocação do risível de intencionalidade reflexiva, em calibrada performance de uso e abuso dos recursos histriônicos e capaz de desentorpecer qualquer espectador.

Numa gramática cênica fluente em seus achados cuja empatia, de teor irreverente e instintivo, faz A Invenção do Nordeste dar seu pronto e qualitativo recado ao Sudeste, como uma das mais gratas surpresas da temporada teatral.
                        
                                           Wagner Corrêa de Araújo


A INVENÇÃO DO NORDESTE está em cartaz no Sesc/Copacabana/Mezanino, de quinta a sábado, às 21h; domingo, às 20h. 70 minutos. Até 29 de julho.

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