RETROSPECTIVA TEATRAL 2017: A SALVAÇÃO PELA RESISTÊNCIA


PATRÍCIA SELONK EM HAMLET

Na visceral culminância de uma crise, que já tinha se manifestado em 2016, o teatro também viu seus recursos patrocinadores escoarem pelo ralo, sem falar na dificuldade, cada vez maior,  de encontrar espaços diante do difícil enfrentamento  de seus custos .

Mesmo assim, entre trovões e relâmpagos, com um número menor de montagens de maior exigência e com muita economia cênica, a Temporada Teatral 2017 atravessou a tormenta em melhores condições que a dança e  a ópera, como registramos em textos anteriores.

Sendo sempre difícil o critério para seleção mínima de espetáculos, que se destacaram por uma ou outra razão, no risco de se cometer injustiça na escolha ou nas ausências. Optamos, assim,  por 16 espetáculos em cinco blocos temáticos /estéticos.

Inicializando esta resenha por clássicos  revistos, ora na proximidade de seu formato original ora pela criatividade das abordagens. Ressaltando-se aqui as releituras textuais/cênicas de Antígona e  de Hamlet  , com um olhar de contemporaneidade,  e a dramaturgia autoral em torno do mito de Medéia.

A Antígona , na dúplice concepção Amir Haddad/Andrea Beltrão, numa transubstanciação da autenticidade e da permanência universal da personagem de Sófocles, em singularizado espetáculo solo, de incitante intimismo e cumplicidade pública. Ou a recolocação da Medéia(Débora Lamm) no tempo de não pertencimento do caos migratório, a partir das marginalizações do feminino, no apelo convocatório de Mata Teu Pai, de Grace Passô, com Inez Viana dirigindo.

Ou o redimensionamento contemporâneo da essência, filosófica, psicológica e política, do pesadelo shakespeariano na escritura de Mauricio Arruda Mendonça  e na incisiva transposição de Paulo de Moraes para o Hamlet. Ou o distanciar-se do realismo psicológico no Tennessee Williams da obra prima Um Bonde Chamado Desejo,  na diferencial urdidura dramática imprimida por Rafael Gomes , com vigoroso resultado estético.

Seguindo-se, ainda, nestes conflitos de vontades e dos contrapontos afetivos/sexuais, nas sagas familiares. A gramática cênica, tensa, angustiosa, poética e humana de personagens sitiadas que se atacam em Agosto, do americano Tracy Letts, na envolvência alcançada por André Paes Leme e seu  potencializado elenco.

Ou a trajetória de um núcleo domiciliar, na transição de vidas  parentais em alteratividade  geracional e comportamental , na surpreendente dramatização de Love, Love, Love, nas mãos de Eric Lenate  para a textualidade do inglês Mike Bartlett. Ou na segurança artesanal com que Daniel Herz conduz a voracidade rodriguiana , no entremeio de corrupção e hipocrisia do microcosmo social de Perdoa-me Por Me Traíres.

TOM NA FAZENDA/ ARMANDO BABAIOFF E GUSTAVO VAZ

Dando continuidade a uma saudável abertura à exposição/reflexão sobre a livre opção de  identidade e diversidade sexual, três montagens se tornaram destaques absolutos, com possibilidades do alcance máximo nas premiações anuais RJ/SP.

ELA , de Márcia Zanelatto, através da descoberta  dolorosa de uma doença terminal , em texto primoroso e acurada direção(Paulo Verlings), instaurando uma poética progressão dramática , na pulsão presente/passado e no memorialismo, do sonho feliz à verdade crua de um retrato feminino LGBT.

Ou o relacionamento físico/afetivo de dois homens que se odeiam e se amam mutuamente, entre a rejeição violenta ou a submissão masoquista à igualdade do desejo sensorial, em Tom Na Fazenda, do franco/canadense Michel Marc Bouchard. Numa carismática realização de Rodrigo Portella , sob a égide do ator protagonista Armando Babaioff, no mais impactante momento dramatúrgico do ano.

Sem deixar de lembrar, no mesmo seguimento, O Jornal-The Rolling Stone do inglês Chris Urch, em primorosa idealização de Kiko Mascarenhas/Lázaro Ramos, em torno do preconceito sanguinário oficial de Uganda contra o comportamento gay, metaforizado no relacionamento homoerótico de um jovem nativo e um médico irlandês e ampliado pelo fanatismo religioso.

Na trilha da cultura popular, o referencial tributo ao circo , à tragicomédia e ao melodrama operístico, estabelecendo pontes entre o palco e o picadeiro , em Pagliacci. Na Cia La Minima, entre orgânicos atores/palhaços, sob o domínio artesanal de Chico Pelúcio e refinada trupe técnico/artística.

Ou os liames biográficos/literários de Ariano Suassuna tecidos na teatralidade musical delirante que une Braúlio Tavares e Luis Carlos Vasconcelos à exponencial síntese ibérico/medieval/nordestina, na representação brincante/cordelista e no sotaque mamulengo de Suassuna – O Reino do Sol.

Longe da padronização clássica,quase um anti-musical,  áspero, excêntrico, viral, sem “happy end”, patético na sua ácida solução final, Dançando no Escuro, inspirado no filme de Lars von Trier. Que, na sua particularizada narrativa dramática, iluminou o final de temporada dos musicais em moldes cariocas, no corajoso projeto diretor de Dani Barros para bravos atores/cantores.

Mais, para finalizar esta breve incursão por alguns caminhos da temporada teatral 2017, o descortino de três passagens por um teatro politizado e contestador. Tanto por seu dimensionamento estético como pela provocadora inventividade direta e seca, no tenso mas esclarecedor Adeus Palhaços Mortos. Em avançada experimentação plástico/psicológica de José Roberto Jardim para uma obra básica de Matei Visniec.

Tendência reafirmada na “comédia de ameaça” de Harold Pinter –A Festa de Aniversário – que Gustavo Paso potencializa incisivamente, no equilíbrio de territorialidades opostas,  tanto na sua conotação metafórica como na sua percepção realística, em estilizado retorno cenográfico.

Ou na acentuação historicista dos recalques da violência em nosso cotidiano, desde a fúria colonialista portuguesa aos invasores franceses, na transgressiva demolição legalizada do instinto nativista e da pureza antropofágica.  E que, em Guanabara Canibal,  Pedro Kosovski (texto) e Marco André(encenação) fazem replicar na insanidade aliciadora e marginal dos estabelecidos neste obscurantista poder político por nós vivenciado.

                                           Wagner Corrêa de Araújo

SUASSUNA - AUTO DO REINO DO SOL

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