ELA : DOLOROSA INCURSÃO PELO FEMININO


FOTOS/ELISA MENDES

Quando Marguerite Duras escreveu seu roteiro ficcional para o filme de 1961, Ano Passado em  Marienbad , de Alain Resnais, ela usou a junção inusitada dos recursos do flashback e do flashforward  , para exprimir o espaço e o tempo, o presente e o passado, o sonho e a realidade.

Um referencial perceptível numa das mais incisivas textualidades dramatúrgicas de Marcia Zanelatto – ELA. Que impulsiona, além de suas outras habituais incursões teatralizadas por personagens mulheres  da música, da poesia e da filosofia, a sua fiel retomada da representação do feminino, no ângulo LGBTQ da identidade pela diversidade sexual.

Aqui, também,  faz-se presente a convivência de uma  narrativa memorial de fluxo compartimentado, através das impressões veristas causadas  entre o imaginário e o agora. Resultante da dolorosa descoberta de uma doença terminal – a Esclerose Lateral Amiotrófica - que, por sua vez, remete, com suas primeiras letras, à titulação da peça.

Potencializada pelo fissuramento contrastante  da  caracterização do mal físico  e da energia gestual no papel de Clara ( Elisabeth Monteiro), uma coreógrafa que mantém um relacionamento homoafetivo com sua aluna, a bailarina Isabel ( Carolina Pismel).

Incluindo-se, aí, a intervenção da médica Paula( (Patrícia Elizardo)na sua difícil revelação da incúria de um  malefício mortal  (Ela), capaz, assim, de ir privando , aos poucos, todas as faculdades motoras e sensoriais de uma mentora da fisicalidade artística.

E precipitada, no exemplar dimensionamento psicológico do desempenho de Elisabeth Monteiro, sobremaneira, no  frio auto-consolo de sua personificação de corte laminar. Num entremeio de provocados  rancores  e falseados questionamentos  , para preservar a amante  do cruel destino finalizador de um convívio passional.

Fazendo com que  Isabel  , em momento básico do alterativo sequencial dramático, como a  pupila artística e a consorte amorosa, desafie as forças celestiais, em tom confessional de entrega à rebeldia  , na emotiva interpretação  de Carolina Pismel.

A dramaturgia de Marcia Zanelatto desenvolve sobremaneira esta  nuance subterrânea da trama , entre interiorizações monologais e diálogos que alcançam a cumplicidade da plateia pelo seu tom de poético coloquialismo e verdade reflexiva.

Neste contraponto das adequações da gestualidade(Lavinia Bizzoto), quase teatro/dança às incidências sonoro/musicais(Marcello H), estas marcas funcionais são extensivas à indumentária (Flavio Souza) ,  aos tons introspectivos das luzes (Fernanda /Tiago Mantovani) e , especialmente, ao delírio plástico/visual da concepção cenográfica( Mina Quental /Atelier da Glória).

Onde paira a sensitiva direção de Paulo Verlings que, com  olhar armado na inventividade, explora uma gramática cênica de domínio convicto da   composição dramática.

E que, sabendo conjugar o vigor do texto com a  organicidade da performance, possibilita, enfim, esta  surpresa estético/teatral  da temporada.

                                             Wagner Corrêa de Araújo


ELA está em cartaz no Teatro III do CCBB, Centro/RJ, de quarta a domingo, às 19h30m. 60 minutos. Até 28 de maio.
NOVA TEMPORADA: No Teatro Sesi,Centro/RJ, segundas e terças, às 19h30m. 60 minutos. Até 29 de agosto.

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