CARTOLA: UM FRAGMENTÁRIO MEMORIAL ALEGÓRICO


FOTOS/ALINE AQUINO

“O jeito de Cartola botar em lirismo a sua vida, os seus amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da poesia, essa iluminação”.

Se palavras tão precisas  do poeta maior Carlos Drummond de Andrade serviram como um sensível e justo epitáfio para  o grande artista popular, pouco após sua partida(novembro de 1980), o mesmo não se aplica ao falível retrato, em tempo de teatro musical,  Cartola, O Mundo É Um Moinho, de Artur Xexéo, de 2016.

Claramente inspirado e identificado com a  estrutura dramatúrgica da primeira versão para os palcos da vida do menestrel mangueirense – Obrigado Cartola, de Sandra Louzada - aqui nada mais houve que replicar o fio condutor de 2004, com suas qualidades e possíveis falhas.

Onde o desdobramento da narrativa biográfica se estabelece em dois planos paralelos – a realidade, com sua trama rigorosamente cronológica, e  a  alegoria  na transmutação de fatos da vida e  obra do cantor/compositor, via um enredo de imaginária escola de samba.

E é exatamente no desconexo e fragmentário  confronto,de dúplice  dimensionamento verista/metafórico, que o presente musical não faz jus ao mérito de um dos mais significativos baluartes da música de poética popular. 

Angenor de Oliveira(1908/1980) ou simplesmente Cartola,com sua sofrida trajetória existencial,de porteiro/pedreiro/lavador de carros à sua descoberta furtiva ,o sucesso musical tardio e o absoluto reconhecimento post-mortem como gênio imortal da MPB.

Alternando recortes memorialísticas com os preparativos de um carnavalesco para um desfile /tributo em  samba/enredo há, enfim, uma incomoda dispersão com nuances aleatórias de rasteiro humor televisivo  e personagens caricatos ou quase  dispensáveis, no  desvio focal, palco/plateia ,do pretenso homenageado.

Onde uma empenhada direção de Roberto Lage busca diminuir estes percalços no seguro domínio  da performance, desde os papéis coadjuvantes como o pai de Cartola (Augusto Pompêo), Carlos Cachaça(Eduardo Silva) ou o carnavalesco Luizinho (Hugo Germano) apesar ainda do gestual e da vocalização em carregados tons acima, entremeados com outras inúmeras intervenções de desempenhos episódicos. 

Havendo, ainda, que se reconhecer a energia postural de Adriana Lessa(como Deolinda, primeira namorada de Cartola e também Soninha, a cabrocha) e o convicto presencial físico e vocal de Virginia Rosa(Dona Zica), encobrindo as suas desnecessárias aparições mudas do  primeiro ato, reiterativas de um gasto recurso (muito comum em concepções operísticas como referencial do porvir adverso do destino).

Numa montagem sem maior ousadia cenográfica(Paula de Paoli), indumentária (Luciano Ferrari) e luzes previsíveis(Fran Barros), tímida coreografia (Alex Morenno), o apelo crítico/estético e a cumplicidade do público convergem, inevitavelmente, para sua irrepreensível concepção musical ( Rildo Hora) .

Que ao lado do protagonismo titular de Flávio Bauraqui, com sua veemente similaridade física e carismática entrega, afinal empresta dignidade ao personagem e resgata, só assim, os desacertos conceituais de mais um musical temático brasileiro.

                                           Wagner Corrêa de Araújo



Cartola,o Mundo é um Moinho está em cartaz no teatro Carlos Gomes/Centro/RJ, de quinta a sábado, às 19h;domingo,às 17h.150 minutos. Até 28 de maio.

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