TEATRO 2016: TRAJETÓRIAS DE RESGATE EM TEMPOS DE CRISE


CABEÇA  - UM DOCUMENTÁRIO CÊNICO

Mesmo com a crise política e econômica chegando aos palcos, com corte de patrocínios e teatros fechando suas portas, escolhas dramatúrgicas conscientes conseguiram derrubar muros e estabelecer uma corajosa e brilhante temporada.

Diferencial dos anos precedentes,  com menos investidas nos musicais. Mas de incisivas experiências performáticas monologais , raras mas valorosas incursões na dramaturgia estrangeira e um  surpreendente alcance na problemática político/social da contemporaneidade .

O musical, até então com seu comprovado domínio na preferência do público, teve seu espaço reduzido nos palcos cariocas. Que, depois do surto de eficiente aproveitamento do manancial à moda Broadway, desgastou-se na experiência biográfica, dando, afinal, agora, um inusitado salto.

DESTAQUES DA TEMPORADA

A reinvenção do musical na gramática cênica de admirável riqueza plástica, poética e coreográfica do Auê, com o carisma da inventividade autoral do elenco e da direção de Duda Maia. E  na energia, na fluência narrativa e na visão aberta de Cabeça - Um Documentário Cênico em que Felipe Vidal, com uma nuance vanguardista e sem jamais perder a lucidez, faz uso da pulsão pop/roqueira incitando um instigante musical de questionamento político.

Em outro ângulo, o  texto confessional ,com dolorido lastro de interiorização memorialística, estabeleceu um paralelo entre os tributos afetivos de Matheus Nachtergale em “Processo de Conscerto do Desejo” e de Álamo Facó em Mamãe, na proposição poética e nos ecos da fisicalidade diante da trágica finitude maternal.

Numa dissecação via Artaud/Van Gogh da palavra crueldade contra tudo e contra todos pela liberdade da  condição humana, a performance quase teatro/dança, Entre Corvos, reúne em laminar contundência cênica, Marcelo Aquino(ator),Ary Coslov(direção) e Ana Vitória(movimento). 

Enquanto a ressonância do corpo/sangue/palavra estabelece um outro liame referencial Artaud<>Grace Passô em Vaga Carne, num dos mais irradiantes solilóquios físico/emotivos da nova dramaturgia.

OS CADERNOS DE KINDZU/FOTO DANIEL BARBOZA

Em outra eficaz síntese de uma linguagem solo, os irmãos Adriano(intérprete) e Fernando Guimarães(direção) postulam em, Hamlet-Processo de Revelação, um jogo cênico alternativo , teatro dentro do teatro, com impulsivo olhar crítico , a partir de um icônico personagem.

Inserindo-se ainda às comemorações quarto/centenárias de Shakespeare, uma versão de transcendente teor reflexivo sobre os meandros políticos do poder e submissão, junta , sob o comando de Roberto Alvim, Caco Ciocler e Carmo Della Vechia em Caesar-Como Construir um Império.

E é, ainda, Roberto Alvim que incentiva a potencial entrega de Juliana Galdino em Leite Derramado, incômodo na sua opção pela oralidade seca e direta do textual literário, instintivo na exploração do onírico e do pesadelo, veemente por seu contraponto crítico. Transcrição livro/palco que se faz presente, também, no expressivo e inovador tratamento dramatúrgico da linguagem literária  de Os Cadernos de Kindzu, mais um lance mallarmaico de dados do Amok Teatro.

Dando continuidade a esta proposta de acabamento artístico ,sob o signo de rigorosa maturidade profissional e com sotaque de perspicaz e irônica visão contestadora, O Escândalo Phillipe Dussaert desconstrói a valoração estética da arte contemporânea na envolvência da entrega solo de Marcos Caruso.E Guilherme Weber, na peça de Will Eno - Os Realistas , conduz primorosa interpelação afetiva dos relacionamentos humanos em suas indagações sobre a morte, num elenco  com protagonização ímpar de Débora Bloch.

Impressionam, também, as impactantes virtualidades plástico/reflexivas, entre sangue e vísceras, da insensatez da condição humana em Gritos, da Cia Dos a Deux .Além dos Nós, da criação autoral do Grupo Galpão e de Márcio Abreu, que sufocam as verbalizações das interioridades do eu cotidiano, estabelecendo pontes com o Brasil de hoje.

E, enfim, a concepção diretorial de Aderbal Freire Filho, em Céus(de Wajdi Mouhawad) e A Paz Perpétua (Juan Mayorga), dramatizando o   gosto amargo de desalento, decepção e pânico, de dias sintonizados na zona escura  dos terrorismos internacionais e das irracionalidades pátrias.

                                               Wagner Corrêa de Araujo

LEITE DERRAMADO/ FOTO EDSON KUMASAKA

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