LEITE DERRAMADO: UM INSTANTE FEROZ DA CONSCIÊNCIA COLETIVA

FOTOS/EDSON KUMASAKA


Desde as suas primeiras resenhas críticas  Leite Derramado, o romance de Chico Buarque, não sem evitar prós e contras, foi comparado pela sua estrutura temática às Memórias Póstumas de Brás Cubas

O toque machadiano estaria no seu tom confessional, de ressentimento e  amargura , onde um moribundo quase centenário , num infecto hospital público, relata à enfermeira, das glórias da ancestralidade familiar às decepções e percalços da sua  trajetória final.

Uma narrativa que acaba se confundindo com a de um  Brasil sem saída ,miserável, corrupto, criminalizado,  com suas podres  elites e no descrédito absoluto em seus valores morais e suas instituições políticas.

O personagem/narrador torna-se assim a própria consciência metafórica de seu país ao descrever fatos de seu domiciliário existencial transfigurados nas mazelas de uma história/pátria, cinco vezes centenária.

Na sua transposição à teatralidade, Roberto Alvim ressalta esta nuance desde a emblemática frase inscrita sobre o palco – “Nossa tragédia é toda sua”. E  afasta, assim, a prevalência do personagem feminino Matilde, priorizando uma pulsão coletivista no lugar dos perigos do psicologismo personalista.

E ao escolher uma atriz ( Juliana Galdino) para assumir o personagem masculino do velho Eulálio imprime um sotaque de simbológica ambiguidade a uma identidade genética da cidadania - que pode ser a de qualquer  um de nós.

Dentro do seu conceitual de teatro noir,  Alvim explora as presenças do elenco(Caio D’Aguilar/Diego Machado/Luiz F. Pasquarelli/Marcel Griten/Nathalia Manochio/Renato Forner/Taynã Marquezone) com uma formalização imagética de efeitos plásticos quase espectrais no desenho de luz(Domingos Quintiliano)entre sombras.

E é este contorno de rigorosa expressão corporal , conciso e ao mesmo tempo tenso, que estabelece uma contundente linha dramática. De força interior e envolvência sensorial na equilibrada sintonia do carisma de Juliana Galdino com a elegância interpretativa  dos outros sete atores.

A incisiva concepção cenográfica(também de Roberto Alvim)com seu referencial nativo dos figurinos(João Pimenta) e da natureza,em desenhos primitivos, destaca-se pela pigmentação aquarelista em irradiante poetização  visual de nossa terra, nossa gente.

Onde o postural hierático ritualiza  a palavra e o gesto numa estética entre o imaginário barroquista e o sensualismo tropicalista, acentuada pelas rompantes incidências sonoras(Vladimir Safatle) de cantos de samba, ritmos de candomblé e hinos ufanistas.

Incômodo na sua opção pela oralidade seca e direta do textual literário, instintivo na exploração do onírico e do pesadelo, veemente por seu contraponto crítico, Leite Derramado é uma surpresa artística e um testemunho dramático irrepreensível. Que chega, neste caos nosso de cada dia,  com hora e alvo certo.

                                         Wagner Corrêa de Araújo


LEITE DERRAMADO está em cartaz no Teatro Ginástico, Centro/RJ. Quinta a sábado, 19h. 70 minutos. Até 18 de dezembro.

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