GOTA D'ÁGUA ( A SECO ) : ESSENCIALISMO CÊNICO

FOTOS/SILVANA MARQUES

“Experimenta apenas retocar /a trilha da Medéia, a filha de Aietes! Sentir-te-ás anônimo e rasteiro”, já propugnava um  epigrama poético da Antiguidade grega pela intocabilidade da tragédia  original  de Eurípides .

Advertência ignorada , através da resistência dramatúrgica, de Sêneca, Corneille, Anouilh, ao nosso Paulo Pontes. Sem esquecer suas passagens indeléveis pela ópera (Cherubini) e pelo cinema (Pasolini).

Mítica e poética, trágica e transcendental, a paixão vilipendiada no ódio de Medéia por Jasão , ao sentir-se traída, leva-a à decisão macabra de vingança por seu amor humilhado.

Na versão brasileira, Gota d'Água,  com quatro canções incidentais de Chico Buarque, a narrativa é transferida para uma comunidade suburbana onde Jasão(Alejandro Claveaux) é um sambista nascente que, em sua juventude sedutora, desperta o alucinado  protecionismo materno/sexual  de Joana(Laila Garin).

O aparecimento de uma rival , seguido de abandono e desprezo, levam Joana a uma trama funesta , nos moldes (com pequenas variações)da personagem similar - a clássica Medéia do tragediógrafo ancestral.

Gota d'Água (A Seco) - na  concepção minimalista de Rafael Gomes há uma condensação narrativa nos dois personagens Joana e Jasão, sendo os outros, do original de Pontes,  apenas mencionados no decorrer da ação.

Há ,ainda, um intencional enfoque nos embates amorosos dos protagonistas e  no teor erótico/emotivo de uma mulher aniquilada pela desconstrução de sua afetividade. Que na sua recusa por aceitar a partida do amante é tomada por uma raiva sobre-humana e de angustiada tensão.

A opção pelo  extremado conflito psicológico, se por um lado desconstrói parte fundamental da identidade ideológico/política do original, ressoa no brilho da enérgica invenção sensorial/estética imprimida pela densidade direcional   de Rafael Gomes.

Aos recursos técnicos  de primeira ordem – do apurado senso plástico da cenografia(André Cortez) e dos figurinos (Kika Lopes) ao ambientalista design de luz(Wagner Antonio),alia-se o preciosismo do score musical de Pedro Luís, contextualizando outras canções de Chico Buarque.

Num crescendo dramático de intensidade  introspectiva Laila Garin atira-se na ação, completamente assumida enquanto artista e personagem, irradiando-se em voz, canto e gestualidade, de grandiloquente desafio interpretativo.

Capaz de provocar com tal potencialidade,inicialmente,uma certa sensação de desequilíbrio com seu partner Alejandro Claveaux que ,na sua elegância interpretativa, acaba assumindo um seguro domínio da performance, apostando na sensual empatia jovem do seu papel.


Num espetáculo completo , não só pela riqueza literária de sua versificação e por sua musicalidade poética mas, sobretudo, pelo virtuosismo de seu substrato cênico.











GOTA D'ÁGUA ( A SECO) está em cartaz no Teatro Net Rio/Copacabana, de quinta a sábado, às 21h;domingo,às 20h. 90 minutos. Até 26 de junho.
Em nova temporada,no Teatro Riachuelo, Centro/RJ, quarta, sexta e sábado, às 20h30m;domingo,às 17h. Até 19 de fevereiro.

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