O CAMAREIRO: UMA SINFONIA CÊNICA

FOTOS/ JULIANA HILAL


Uma companhia teatral realiza apresentações numa Inglaterra assediada pelos progressivos bombardeios nazistas enquanto seus integrantes, num entra e sai nas coxias e nos bastidores de um camarim, se prepara para mais uma encenação shakespeariana, desta vez do Rei Lear.

E é ali que o fiel camareiro Norman ( Kiko Mascarenhas)se desdobra para que o velho ator Sir ( Tarcísio Meira)  se decida pelo palco,  sem se esquecer da fala  inicial como Lear ou confundir a maquiagem com a de Otelo.

As inseguranças e a preocupação também aparecem através do resto da trupe, nos questionamentos e abordagens, respectivamente,  das atrizes Milady( Lara Córdulla) e Irene (Karen Coelho).

E, entre os atores, na rivalidade  ciumenta  de Geoffrey (Sílvio Matos) e nas dúvidas autorais de Oxenby( Ravel Cabral),  paralelo às hesitações da assistente de direção Madge (Analu Prestes).

Este meticuloso microcosmo de uma encenação teatral, além da peça original de Ronald Harwood( 1980) - O Camareiro ,  se estendeu ao cinema (Peter Yates, 1983, com Albert Finney/ Tom Courtenay)) e à  televisão inglesa(2015), pela dupla McKellen/Anthony Hopkins.

Chama a atenção na trama dramatúrgica a singular sincronia de protagonismo entre os personagens do camareiro( Kiko Mascarenhas) e do veterano ator (Tarcísio Meira), numa dependência afetiva marcada pelo rigor  da expressividade dialogal,  em   performances de brilho invulgar .

Impulsionando a magia do espetáculo e abrindo-lhe as portas para uma transcendental ritualização sensitiva do ato criador . Compartilhada na competência , de coesão ímpar, do elenco complementar ( Analu Prestes, Karen Coelho, Lara Córdulla,Ravel Cabral, Sílvio Matos).

Num fluxo similar, a apurada e elegante concepção dos figurinos (Beth Filipecki/Renaldo Machado), o mágico descortinar dos segredos do maquinário cenográfico (André Cortez), sob um ambiental desenho de luz (Domingos Quintiliano), e os passionais temas musicais da trilha de Rafael Langoni.

Tudo ampliado com desenvoltura, entre a destreza técnica, intencionalidade dramática  e a interação emotiva com a plateia, pela inventiva  artesania  do comando de Ulysses Cruz.

O enredo de O Camareiro propicia, assim, diversas leituras. Ora a partir da demência tragicômica  do personagem /ator,  como um alter ego  da finitude existencial do Lear shakespeariano e na simultânea vassalidade  simbológica do mordomo com o bobo deste Rei.


Ou, por sua emergência metafísica  da vida como um teatro - “O mundo todo é um palco e todos os homens e mulheres não passam de atores”, mais uma vez com o referencial do bardo inglês.

Numa pulsão de  tal urdidura poética e organicidade estética que sua instrumentalização dramatúrgica ecoa, metaforicamente,  com  a energia e articularidade dos movimentos de uma “sinfonia cênica”.



O CAMAREIRO está em cartaz no Teatro Sesc Ginástico,Centro, sexta e sábado, às 21h;domingo, às 18h. 130 minutos, com intervalo. Até 12 de junho.


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