O CAPOTE: RISO ENTRE LÁGRIMAS



A obra ficcional de Nikolai Gógol(1809/1852), natural da Ucrânia, tem uma singularidade tão grande a ponto de Dostoievsky afirmar -  “Todos nós saímos de O Capote“.

Personalidade conturbada pelos  recalques e pela postura ensimesmada, o escritor   aprendeu, como auto defesa psicológica , a usar do riso sarcástico para ironizar a vida, o meio social e a moral de seus contemporâneos.

Seus personagens são melancólicos títeres na mão do destino, assumindo um comportamento bizarro diante das frustrações e complexos que marcam seus cotidianos sem perspectiva.

No Diário de um Louco, a servil condição de um empregado fá-lo sentir-se um  rei no hospício, enquanto em O Nariz e O Capote existe o  escárnio por trás do jogo das aparências. O primeiro homem acorda, assustado, sem o órgão nasal, enquanto o simplório funcionário Akáki esconde-se atrás de um capote, adquirido com tamanhas privações que o levam à morte.

Embora  estes três textos sejam absolutamente literários , se notabilizaram nos palcos, ora em monólogos , ora em forma de ópera ( O Nariz, de Shostakovich). Ao lado do único original de Gógol para os palcos ( a popular comédia , O Inspetor Geral).

É exatamente este universalismo ao caracterizar a condição humana em seus mais ácidos baixios que faz de O Capote , um clássico atemporal. A opressiva mediocridade da ambiência burocrática continua a mesma, seja na czarista São Petersburgo, seja em nossa capital federal.

A adaptação   por  Drauzio Varella, em seu formato de solilóquio, procurou manter a força interiorizada do texto inicial. O que foi subvertido, como uma opção dramatúrgica diferenciada por Cássio Pires, dividindo as vozes do personagem mor Akaki(Rodolfo Vaz), com dois interlocutores/ narradores (Marcelo Villas Boas/Rodrigo Fregnan).

Mesmo com o risco de perda da identificação confessional no amargo discurso ideológico do protagonista, a montagem ganha pela inventividade na perceptível experimentação cênica sob o comando de Yara de Novaes.

Através de uma claustrofóbica arquitetura cenográfica (André Cortez), com sombrias luzes(Bruno Cerezoli) e espectrais projeções (Rogério Velloso), sob os metafóricos acordes sonoros( Dr. Morris) ao vivo , pelo teclado de Sarah Assis.

Onde o absurdo e o humor negro no retrato de um anti-herói são atingidos , exponencialmente, na meticulosa performance de Rodolfo Vaz. Apesar do desvio exteriorizado, em detrimento  da nuance subjetiva, pelos  dois narradores , há compensação na irreverente energia de Rodrigo Fregnan e Marcelo Villas Boas.


Tudo capaz,  afinal ,  de tornar-se ,  na dissecação da pequenez da alma humana, um fulgurante ato teatral  de transfiguração reflexiva do riso entre lágrimas.

    
   O CAPOTE está em cartaz no Teatro I do CCBB, Centro do Rio, quarta a domingo,      às 19h. 70 minutos. Até 13 de março.

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