CARA DE FOGO : RETRATO FAMILIAR ENTRE CHAMAS

FOTO BY RENATO MANGOLIN

Primeiro texto teatral do alemão Marius von Mayenburg, Cara de Fogo, estreado em 1998, encontra um  referencial em duas obras literárias sobre desintegração e disfuncionalidade familiar . Ambas de expressivo potencial dramático em transcrições cinematográficas.

A clássica novela de Jean Cocteau – Les Enfants Terribles(1929) onde dois irmãos adolescentes se envolvem em relações afetuosas, entre o  incesto e a  loucura . E no romance Jardim de Cimento(2009) do inglês Ian McEwan, exacerbado pelo assassinato dos pais por quatro crianças numa ambiência doméstica minimalista.

Na peça alemã, ecoam também relacionamentos  familiares bizarros. O adolescente Kurt ( Johnny Massaro) vive em estado catártico nos seus perigosos experimentos com o fogo , ao lado da  irmã,  Olga( Julia Bernat) por quem nutre  uma obsessiva atração de delírio e sexualidade.

Diante de um pai( Isaac Bernat) impulsionado pela leitura, em jornais ,de assassinatos de prostitutas  e de uma mãe( Soraya Ravenle) indiferente, na presença dos filhos,  até no despudor de lavar suas partes íntimas .

O quinto personagem e  o mais próximo da racionalidade, é Paul (Alexandre Barros) que faz, de sua moto e de suas roupas esportivas, o fetiche para seduzir Olga, como seu pretenso namorado.

A enigmática cenografia( Aurora de Campos) de caráter claustrofóbico, no minúsculo espaço residencial ,é ultrapassada apenas  por avanços no vazio do escuro até a  plateia .

E alcança , no desenho de luzes( Tomás Ribas),  o confronto ideal entre tons soturnos e explosões de cores.  Refletida também na singular estilização dos figurinos (Beth/Joana Passi de Moraes).


FOTO BY RICARDO BRAJTERMAN

Interferências sonoras( Davi Guilhermme ) contrastam acordes melodiosos com imprevistos ruídos  de pesadas ferramentas(  num referencial simbólico de mentes/metais,   fundidas/forjadas  no fogo) atiradas a esmo , realisticamente. 

Irreverência, inquietude e sarcasmo marcam o refinado rigor interpretativo de Soraya Ravenle/Isaac Bernat. Enquanto Julia Bernat é tomada pela emotiva e amarga sensorialidade de seu personagem, há uma carismática identidade entre o insólito e o poético  na performance de Johnny Massaro.

Extensiva ao revelador desempenho de  Davi Guilhermme, quando o substitui. Além, ainda,  da convincente espontaneidade de Alexandre Barros ,num papel de menor densidade .

Cara de  Fogo, entre esperma e sangue, incesto e assassinato , é assimilado pelo  olhar inventivo e domínio cênico provocador  de Georgette Fadel, com sua dessacralização estética ,entre chamas, da perversidade .

Sendo capaz ,ainda,   de uma teatralidade   incendiária não só pela  competência artesanal de sua montagem mas, enfim,   pelo reflexivo substrato político/metafórico de sua concepção.


FOTO BY RENATO MANGOLIN
CARA DE FOGO está em cartaz no Teatro III do CCBB, Centro do Rio, de quinta a domingo, 19h30m. 90 minutos. Até o dia 24 de janeiro.

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