MARCO ZERO: NA ZONA CINZENTA DAS LIGAÇÕES AMOROSAS

FOTOS  BY DALTON VALÉRIO

Dividido entre o cinema, o teatro e a literatura, Neil LaBute é um dos nomes mais representativos da dramaturgia norte americana contemporânea, chegando perto do dimensionamento de David Mamet e Edward Albee.

E algumas de suas peças já são conhecidas do público brasileiro, especialmente pela  sua ácida abordagem dos relacionamentos humanos à luz dos conflitos e tragédias de nosso tempo.

Em Marco Zero, de 2002, ele reflete sobre o dia em que, diante das explosões do World Trade Center,  ao ser obrigado a trocar uma viagem área por um extenso percurso ferroviário, decidiu-se por uma abordagem dramatúrgica do fato terrorista, pelo viés das ligações amorosas.

Sua narrativa, de humor sarcástico e irônica crueldade, tendo como pano de fundo, a destruição material e humana naquele 11 de setembro, avança nos meandros da ética em confronto com uma postura de egoístico escape.

Quando Abby (Letícia Isnard)chega com uma sacola de compras , ao seu apartamento nas imediações do WTC , tem sua fala embargada pela tosse, com a poeira dos escombros , tornada visível também em suas roupas e na própria ambiência doméstica.

À frente  dela, em postura catatônica, seu funcionário e amante Ben(Tárik Puggina), ressalta sua indiferença ao acontecimento na recusa, inclusive, de atender aos chamados insistentes de um telefone.

Ele prefere usar aquele desastre ,afetando possíveis amigos e vizinhos, como um passaporte sem identificação, para o fim de todas as suas responsabilidades, escondendo-se no anonimato dos desaparecidos. No propósito de deixar de lado a esposa e as filhas distantes, desfazendo- se de tudo para começar do "marco zero".

Numa iluminação ( Paulo Cesar Medeiros), crua e sonhadora ao mesmo tempo,  as brumas de uma impactante arquitetura cenográfica(Aurora dos Campos), de uso imaginoso na transparência de uma cortina.

Com recatados figurinos (Flávio Souza) e nas sutis interferências sonoras  de reportagens televisivas e incidências musicais ( Rodrigo Lima).Na acentuação absoluta de um décor de exponencial  teatralidade .

Onde a inquieta atuação, de energia  fulgurante e extrema loquacidade, na personificação de Abby em  Letícia Isnard, marca o contraponto da performance, de convincente vulnerabilidade psicológica e rudeza de caráter, transubstanciadas no Ben de  Tárik Puggina.

A habitual insubmissão  do comando de  Ivan Sugahara ,  ao convencionalismo cênico, exacerba  o desenho das contravenções, reais e delirantes , de um caótico relacionamento sob ameaça de demolidor atentado. Contando , aqui, com o olhar armado da co-direção de Simone Beghinni.

Capaz, enfim, de estabelecer uma provocante  conexão emocional  com o perceptível embrutecimento  da condição humana na sua postura egocêntrica de que, diante  de qualquer catástrofe, o que importa o outro, quando é mais fácil se salvar sozinho.


MARCO ZERO está em cartaz na Caixa Cultural, Centro/RJ, de terça a domingo,19h.
Sessões extras nos sábados, 12 e 19, às 17h. 75 minutos.Até 20 de dezembro.

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